Temo o homem que só conhece um livro (Timeo hominem unius libri). - Sto. Tomás de Aquino
É
possível que os primeiros homens não nasceram com
inteligência. Esta foi construída ao longo de sua
história de hominização. A evolução de qualquer criança
em todos os tempos e culturas, que evolui do mais
simples para o mais complexo pensamento abstrato ou
simbólico, deve estar ainda acontecendo com o ser
humano, ou seja, ainda estamos em processo de evolução
de nossa capacidade de raciocínio, de convivência
com as diferenças de raça, cultura, religião, língua
ou modo de ser.
Desde
o seu surgimento, o homem é movido por duas lógicas,
consciente e inconsciente. O homem, primeiramente
instintivo e passional, foi sendo recoberto pela consciência
e razão. Mas essa razão ainda não conseguiu determinar
a totalidade de seus atos. Ou seja, o irracional cujo
efeito são as passagens aos atos ainda domina grande parte do existir humano. Freud
descobriu que somos resultantes de dois princípios
psíquicos opostos que lutam entre si: os Princípios
de Prazer ou do Gozo e o de Realidade. E, ainda, haveria
uma luta entre essas duas e a leis da cultura, cujo
base inaugural teria surgido com a proibição do incesto.
Esse
jogo de forças - do desejo e da cultura - sempre foi
complicado para as culturas entender, resolver ou
administrar. Tradicionalmente a cultura resolveu,
reprimindo, regrando, punindo, etc. Foi preciso muito
tempo, experiências e debate para que algumas culturas
e sujeitos aprendessem a conviver com o seu próprio
desejo, com o erótico, com as diferentes sexualidades,
especialmente com a mulher. Todas as culturas ainda
têm dificuldade de aceitar que o Bem e o Mal constituem
o todo do ser humano. As pulsões e desejos humanos
sempre foram tidos como forças demoníacas. Na antiguidade,
o demônio nada tinha a ver com o diabo, era um ser inspirador ou era quem vetava
as más atitudes. Sócrates, no séc. 5 antes de Cristo,
dizia que o daimon
o guiava ao bem e vetava suas tendências mal pensadas.
Só mais tarde é que interesses mais políticos que
religiosos, fizeram acontecer a fusão do demônio como
o diabo, satã, etc.
Um
dos mecanismos mais utilizados pelo ser humano para
se livrar do Mal é a projeção
de sentimentos ou figuras inexistentes como operadores
simbólicos do psiquismo. A atividade psíquica que
sustenta a projeção é de ordem inconsciente, tal como todos os demais mecanismos de defesa. Odiar
o vizinho, ou não aceitar uma tendência sexual, ser
invejoso, etc. poderia forçar o psiquismo a projetar
essas ideias e sentimentos em outras pessoas, personificadas
enquanto diabo, satã, enfim o Mal. Uma nação inteira
pode ser tomada pelo histerismo de projetar numa só
figura o Mal que, no fundo, é dela mesma. Mas, ela
própria não se dá conta disso, visto ser uma ação
made in inconsciente
que demanda purificação de Mal.
Maniqueísmo:
a luta entre o Bem e o Mal
O maniqueísmo é
uma forma de pensar simplista em que o mundo é visto
como que dividido em dois: o do Bem e o do Mal. A
simplificação é uma forma primária do pensamento que
reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa
e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não
é. A simplificação é entendida como forma deficiente
de pensar, nasce da intolerância ou desconhecimento
em relação a verdade do outro e da pressa de entender
e reagir ao que lhe apresenta como complexo. "A
pressa de saber obstrui o campo da curiosidade e liquida
a investigação em muito pouco tempo", declara
o psicanalista W. Zusman (A
terra sob o poder de Mani, JB/s.d.). A pressa
não é só inimiga da perfeição, é também inimiga do
diálogo, do pensamento mais elaborado, sobretudo,
filosófico e científico.
O
maniqueísmo
é uma forma religiosa de pensar; não como religião
autônoma, mas enquanto comandos camuflados que influenciam
os discursos do cotidiano, inclusive as religiões
formais e seitas.
Mani
(Manes ou Manchaeus), nascido na Pérsia, no século
III, fundou uma
religião, o maniqueísmo, após ter sido "visitado" duas vezes por um
anjo que o convocou para esta tarefa, fato este comum
entre aqueles que fundam religiões e seitas até hoje.
A religião maniqueísta se difundiu pelo Império Romano
e pelo Ocidente Cristão. O maniqueísmo combina elementos
do zoroastrismo, antiga religião persa, e de outras
religiões orientais, além do próprio Cristianismo.
"Possui uma visão dualista radical, segundo a
qual o mundo está dividido em duas forças: o Bem (luz)
e o Mal (trevas) como entidades antagônicas em perpétua
luz. Luz e trevas no sistema maniqueísta não são figuras
retóricas, são representações concretas do Bem e do
Mal. O Reino da Luz e o Reino das Trevas estão em
permanente conflito. É dever de cada ser humano entregar-se
a esse eterno combate para extinguir em si e nos outros
a presença das Trevas afim de poder alcançar o Reino
da Luz, que é o Reino de Deus. No maniqueísmo, os
homens "eleitos" irão purificar o Bem, com
uma vida de castidade, renúncia a família, alimentação
especial, etc.
A
expressão maniqueísmo ganhou uso corrente
ao definir aquele tipo de pessoa ou aquele
tipo de pensamento de estruturação dualista que reduz
a vida (ou alguns de seus aspectos) a pares antagônicos
irreconciliáveis, tipo: direita/esquerda, corpo/mente,
reacionário/progressista, belicista/pacifista, fiel/infiel,
capitalista/comunista, individualismo/coletivismo,
branco/negro, ariano/judeu, raça superior/raça inferior,
objetivo/subjetivo e assim por diante. "É evidente
que não se pode deixar de reconhecer a existência
daquilo que cada um desses pares antiéticos nomeia,
mas o pensamento maniqueísta vai além na medida em
que considera que um
lado deve destruir o outro, porque um é Luz e o outro
Trevas" (Zusman), um é o Bem e o outro é
o Mal.
Por
exemplo, a propaganda nazista contra os judeus plantou
no inconsciente do povo alemão o que este já continha
de preconceito e racismo. Primeiramente,
o alemão ariano e cristão tinha herdado a crença de
que os judeus eram os assassinos de Cristo e representavam
o diabo ou todas as forças do mal, na terra. Assim
como Cristo comanda o mundo espiritual, o diabo comanda
o mundo material - dinheiro, poder e sexo.
Segundo,
os judeus foram associados a esses três elementos
materiais, principalmente o dinheiro. No período nazista,
as crianças alemãs eram educadas para estigmatizar
os judeus, com desenhos e histórias associando-os
ao mal ou ao diabo. Terceiro, a propaganda nazista foi sistemática contra os judeus, explorando
o simplismo do pensamento maniqueísta. Começaram associando
os judeus a traças, piolhos e vermes que "corroíam
a economia alemã", em verdade, tal propaganda
preparava
o espírito coletivo alemão para a chamada "solução
final" ou medida "higiênica" de extermínio
em massa de todo o povo judeu, segundo análise de
Robert Vistrich, da Universidade de Jerusalém.
Outro
exemplo, no período da guerra fria, o presidente norte-americano,
R. Reagan, fazia declarações apontando os soviéticos
como a encarnação do demônio. Depois, o Bush pai,
fez o mesmo com Saddam Hussein. Hoje, o Bush filho,
personifica o Mal em Osama bin Laden e declara em
bom discurso maniqueísta de que "quem não está
com os EUA, está a favor dos terroristas. Os fundamentalistas
islâmicos usam do mesmo maniqueísmo com os norte-americanos,
chamando-os de "grande Satã" e Israel de
"pequeno Satã". São mais que discursos,
são preparativos para ações de destruição do mal em
nome do bem. Sendo o maniqueísmo uma simplificação
do modo de pensar a vida todo o sistema social que
sobre ele se monta é necessariamente dogmático, violento,
intolerante e também fadado ao desmoronamento.
O
maniqueísmo não se sustenta por muito tempo, devido
ao seu dogmatismo, isto é, sua incapacidade de colocar
à prova da realidade ou da lógica, suas verdades simplificadas.
Como seu pensamento está reduzido a um par de verdades
antagônicas, aceitar o raciocínio do outro, discordante,
significa deixar-se arrastar para o domínio do mal
e ser por ele tragado. A vida do maniqueísta se converte
em uma prontidão de vigilância (paranoia) constante
para não se deixar iludir com os "discursos sedutores".
Santo Agostinho que inicialmente foi maniqueísta, depois de ter se
afastado, escreveu em Confissões
(livro 7) que, nessa doutrina "não tinha
encontrado paz e apenas expressava opiniões alheias".
Atualidade
do maniqueísmo
O
modo de pensar maniqueísta é oportunista em todos
os espaços humanos. Ele demonstra ter mais força quando
vivemos situações-limite, desesperança, ódio extremo,
ou falta de perspectiva quanto ao futuro. Nesses momentos,
a mente regride às origens, em busca de soluções mágicas,
simplistas, libertadoras de angústia. A história alerta
que, até pessoas sofisticadas intelectualmente e nações
cientificamente avançadas, como EUA, Alemanha, Israel,
foram levadas pela onda histérica maniqueísta. Os
sintomas aparecem nos discursos: "infinita justiça",
"cruzada contra o terror", "guerra
santa [Jihad] contra o império do mal", a alegria
de antiamericanos após o ataque a Nova York e pseudo-análises
comparando as mortes desses ataques com as de outras
partes do mundo, etc. Leonardo Boff, ex-frei franciscano,
prolífico escritor, guru da teologia da libertação,
atualmente teólogo e ambientalista, em recente entrevista
no jornal O
Globo, num
acesso de ira ideológica que não condiz com o autêntico
espírito do cristianismo disse: ''Acho muito pouco
cair um avião sobre o Pentágono. Deveriam cair 25
aviões. É preciso destruir o Pentágono todo.'' Segundo
a crítica de Alberto Dines, do Observatório da Imprensa,
não foi um escorregão retórico, a tese é defendida
''racionalmente'' mais adiante colocando o Pentágono
e as torres do WTC como símbolos de um sistema que
precisa ser destruído para acalmar a perplexidade
da humanidade.
Escreve
Dines: "O compassivo teólogo sabe que os aviões
não caíram do céu empurrados pela Divina Providência,
foram jogados por alguém. Sabe também que nesses edifícios,
com apenas três Boeings, foram assassinadas milhares
de pessoas. A hecatombe que propõe não é arquitetônica
ou mero saneamento urbanístico. Com
seus 25 aviões está sugerindo um verdadeiro genocídio
em nome da proposta de unir espiritualidade, justiça
social e defesa do meio ambiente. A hecatombe
que propõe não é arquitetônica ou mero saneamento
urbanístico. Com
seus 25 aviões está sugerindo um verdadeiro genocídio
em nome da proposta de unir espiritualidade, justiça
social e defesa do meio ambiente".
Enfim,
todos saímos perdendo ao ler falsas análises - ou
meras opiniões fundadas no pensamento maniqueísta.
Alguns fazem comparações absurdas de Bin Laden como
se fosse o Che Guevara de hoje. Ora, colocar ambos
no mesmo saco é o mesmo erro que chamar um chinês
de japonês ou um cearense de baiano. Bin Laden é de
origem aristocrática, nunca se preocupou com a pobreza
e é um seguidor fanático
do Alcorão que ele interpreta como quer. Já Che Guevara
era um médico que se tornou um guerrilheiro marxista,
um sonhador da erradicação da pobreza; seu método
de luta não matava inocentes tal como faz o terror,
mas os adversários em combate e, também questionava
o valor da religião. Bin Laden nada tem de socialista,
não tem projeto de uma sociedade progressista, em
nada avança no pensamento dialético, muito ao contrário,
como todo fundamentalismo religioso, no fundo é um proto-fascista. Che olhava para o futuro, já o Bin
Laden quer levar a sociedade para um passado mítico
- que nunca houve - segundo a promessa das escrituras
sagradas.
Como
alerta Zusman: "É mais fácil criar "mísseis
inteligentes do que conquistar a inteligência que
permite a superação do pensamento maniqueísta".
É mais cômodo seguir os paradigmas estabelecidos do
que rever os posicionamentos, reorganizar e contextualizar
o pensamento, ter a coragem de reconhecer os erros
ou até abandonar um posicionamento por outro melhor.
Portanto,
mais que uma forma simplista e dogmática de pensar,
o maniqueísmo propõe uma ação, uma luta eterna contra
o Mal, personificado em algumas coisas, pessoas e
situações. Na ação maniqueísta "vale tudo",
até mesmo a violência extrema contra o Mal, que ele
delira. A guerra e a tortura são os principais meios
do maniqueísmo. Hitler, também acreditava ter uma grande
missão de purificação da humanidade. "As lágrimas
da guerra prepararão as colheitas do mundo futuro",
escreveu.
K. Popper constata que " toda vez
que o homem quis trazer o céu para a terra, fez reinar
o inferno". Sabemos pela história que o pior
inferno é aquele que mata, oprime e ordena, em nome
do Bem contra o Mal. Nada é tão perigoso quanto a
certeza, o dogmatismo, a fé cega ou louca.
Nietzsche
propõe pensarmos para além do Bem e do Mal:
"Perguntai aos escravos quem é o "mau"?,
e apontarão a personagem que para a moral aristocrática
é "bom", isto é, o poderoso, o dominador"
(GM, pref. XI). Então,
o Bem e o Mal, dependem da perspectiva e dos interesses
de quem julga. Deveríamos nos colocar no lugar do
outro. Por exemplo, por quê Bin Laden é um homem "mau"
para o ocidente-cristão e, é herói "bom"
no oriente islâmico? Por quê algumas igrejas
fazem show
contra o Mal, mas terminam mais falando das terríveis
forças do Mal do que do Bem?
A atitude cética parece ser o melhor
remédio contra o maniqueísmo. O cético suspende o
juízo, não toma partido, não se rende ao simplismo
de encurralar o pensamento entre a paredes do Bem
e do Mal, do certo e errado. Suspender
o juízo não quer dizer inação; significa elaborar
um melhor pensamento para além da solução dualista,
ou seja, um agir com sabedoria. A educação e a cultura tem
uma grande tarefa pela frente para prevenir o maniqueísmo.
Por Raymundo de Lima, Psicanalista e Professor da UEM, publicado em dezembro de 2001. Para acessar o texto original, clicar AQUI.
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