compreendidas, e
ainda menos praticadas, sobretudo no ocidente cristão essencialmente
violentista. No número de abril de 1959, da célebre revista mensal Stimmen der Zeit, dos padres jesuítas
alemães, aparece um artigo, da autoria do jesuíta P. Hirschmann, provando que
a guerra atômica pode ser lícita, no caso em que seja necessária para salvar o
Cristianismo sobre a face da terra. No mesmo sentido escreve o jesuíta P.
Gundlach, que foi conselheiro espiritual do Papa Pio 12º, afirmando que a
guerra atômica, e mesmo a extirpação de um povo inteiro (naturalmente a
Rússia!) é não somente lícita, mas pode até ser dever de consciência no caso em
que esse povo seja um impedimento para o triunfo do Cristianismo.
O que inspira semelhantes
monstruosidades, oficialmente aprovadas pela respectiva igreja, é a clamorosa
confusão entre “Cristianismo” e “Cristo”. Por “Cristianismo” entendem esses
autores uma determinada organização eclesiástica, engendrada, através dos séculos,
por hábeis teólogos e devidamente codificada pelos chefes hierárquicos dessa
sociedade eclesiástica. A fim de preservar da destruição essa organização
político-financeiro-clerical apregoam esses homens a liceidade da destruição do
espírito do Cristo, que em hipótese alguma aprovaria a morte de um único ser
humano, menos ainda a extinção de muitos milhões de inocentes, a fim de salvar
o reino de Deus. Como se pode salvar o verdadeiro Cristianismo, que é o reino
de Deus, destruindo-o radicalmente pela matança em massa.Por onde
se vê que esses doutores em teologia eclesiástica são perfeitos analfabetos na
suprema sabedoria do Sermão da Montanha, e do Evangelho do Cristo em geral.
O gentio
Mahatma Gandhi, não permitindo a morte de um só homem para libertar a Índia,
compreendia mil vezes melhor o espírito do Cristo do que esses chamados
“cristãos”, razão por que declarava a todos os missionários do ocidente que
procuravam convertê-lo ao Cristianismo: “Aceito o Cristo e seu Evangelho — não
aceito o vosso Cristianismo.”
*
“Não
resistais ao maligno!”...
Nenhuma
igreja, nenhum Estado cristão aceitou, até hoje, essa doutrina do divino
Mestre. Todos praticam violência, por sinal que todas as sociedades, civis e
eclesiásticas, se guiam, até hoje, pela lei do talião, estabelecida por Moisés,
“olho por olho, dente por dente”. Aliás, parece mesmo que uma sociedade
organizada não pode guiar-se pelo espírito do Evangelho do Cristo, porque
qualquer sociedade organizada é baseada sobre o egoísmo, que aprova à violência;
parece que só um indivíduo pode ser realmente crístico, não violentista. A
sociedade tem determinados estatutos, leis, parágrafos jurídicos, que implicam
sanção, isto é, violência, punição aos infratores dos estatutos jurídicos da
sociedade. Sendo que toda a sociedade é produto da inteligência e a
inteligência é, essencialmente, egoísta, não pode haver uma sociedade
não-egoísta, não-violentista. Se Mahatma Gandhi conseguiu libertar a Índia com
ahimsa (não-violência) foi unicamente porque, ao redor dele, havia numerosos
indivíduos firmemente alicerçados na mesma verdade, como concebeu o próprio
Presidente Nehru, e não porque a sociedade como tal se guiasse pelo princípio
altruísta da ahimsa. Toda e qualquer sociedade, como sociedade, pratica
necessariamente himsa (violência), sob pena de se destruir a si mesma, não
fazendo valer as suas leis; só um indivíduo pode praticar ahimsa, não pagando
mal com mal, mas pagando o mal com o bem, amando aos que o odeiam.
“Não
resistir ao maligno” é, pois, uma ordem que visa diretamente o indivíduo em
vias de cristificação. Uma sociedade, sendo fundamentalmente egoísta, nunca
pode ser crística, embora possa dizer-se cristã, isto é, egoísta envernizada de
Cristianismo.
Nenhuma
sociedade organizada pode abrir mão dos seus “direitos”, sob pena de cometer
suicídio, ela só existe em virtude dos seus “direitos”; o direito, porém, é uma
forma de egoísmo, e egoísmo gera violência. Só se a sociedade abdicasse dos
seus “direitos”, tudo endireitaria; mas, enquanto ela faz valer os seus
“direitos”, tudo está torto.
O
contrário do “direito” é a “justiça”, que é praticamente idêntica ao amor. A
“justiça”, no sentido bíblico, é invariavelmente a “justeza”, o perfeito
“ajustamento”, a harmonia entre o indivíduo e o Universal, entre o homem e
Deus, entre a creatura finita e o Creador Infinito. Essa justiça, porém, é o
perfeito amor, como aparece no “primeiro e maior de todos os mandamentos”,
enunciado por Jesus.
No
frontispício do Fórum da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, se acham gravadas
estas palavras do jurista-filósofo Cícero: Summum jus —Summa
injuria (o supremo direito é a suprema injustiça). Quem reclama todos os
seus direitos pessoais, age em nome de seu ego, que é necessariamente egoísta;
mas quem pratica a justiça, age em nome da Constituição Cósmica do Universo,
age em nome da própria alma do Universo, que é Deus; age, em nome do amor
cósmico, que é a voz do divino Eu no homem.
Quem
apela para seus “direitos” age em nome do ego, que é violentista.
Quem
apela para a “justiça” age em nome do Eu, que não é violentista.
“Não
resistir ao maligno” é, pois, um apelo para o divino Eu no homem, e não para
seu humano ego.
*
Há, na legislação mosaica, uma
matemática estranha: supõe que uma violência se neutralize com outra violência.
Se alguém me arranca um olho ou quebra um dente, e eu lhe arrancar também um
olho e quebrar um dente, estamos quites; porque cobrei do meu devedor uma
divida em aberto.
Na realidade, porém, não estamos
quites, nem eu nem ele, porque um negativo dele mais um negativo meu dão dois
negativos; quer dizer que nós dois meu ofensor e eu, ofensor dele, criamos dois
males no mundo; e, como a segunda ofensa exige uma terceira, da parte dele, e
essa reclama uma quarta ofensa, da minha parte, e assim por diante, numa
indefinida “reação em cadeia” — é claro que nós dois, o ofensor de lá e o
ofensor de cá, vamos piorando o mundo cada vez mais, enchendo-o de negativos e
mais negativos.
Contra
essa falsa matemática de Moisés opõe Jesus a verdadeira matemática,
absolutamente lógica e racional, afirmando que o negativo (mal) só se
neutraliza pelo positivo (bem), e que o único modo de melhorar o mundo e a
humanidade é pelo processo de: 1) não resistir ao mal; 2) de opor o bem ao mal.
O meu positivo oposto ao negativo do meu ofensor neutraliza esse negativo, e o
resultado é zero; mas, se eu opuser ao negativo do ofensor não apenas um
positivo (um bem), porém, muitos —digamos 10 — neste caso não somente
neutralizei o negativo (mal) dele, mas ainda há um superavit de positivos, isto é, enriqueci a humanidade de bens
positivos.
Mahatma
Gandhi — precisamente por ser Mahatma, “grande alma” — compreendeu e praticava
admiravelmente essa matemática espiritual do Evangelho do Cristo, dando à
não-resistência o nome sânscrito de ahimsa e à política benevolência para com o
ofensor o nome de satyagraha (apego à verdade), ou seja amor, justiça cósmica.
Naturalmente,
para que alguém possa praticar essa não-violência e essa benevolência, tem de
passar por uma profunda experiência mística sobre a sua verdadeira natureza, e
não se identificar com seu ego físico-mental-emocional.
Huberto Rohden, no livro, Sermão da Montanha.
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