Quem entre nós não está estarrecido com o chamado Estatuto da Família
tal como é proposto pelos deputados neofundamentalistas do congresso
brasileiro atual, homens cujas características éticas e políticas,
morais e psíquicas são inadjetiváveis?
O Estatuto da Família é uma dessas aberrações antipolíticas
caracterizadas pelo uso da estratégia do estado de exceção. Todo mundo
sabe que esse estatuto se impõe como lei autoritária contra um regime
democrático vivido na esfera da vida cotidiana. Não se trata apenas de
privilegiar um tipo de família (caracterizada pela “pureza” bem ao gosto
fascista), mas de distorcer o sentido de relações humanas que nascem
com base em afetos e levam as pessoas a se reunirem no arranjo sociocultural chamado família.
A proposta do Estatuto não coloca apenas uma lei para regulamentar o amor, mas o próprio “nonsense” no lugar de qualquer regra.
(Me perdoem a didática, ou o que caberia melhor aqui como uma nota de
rodapé, mas sei que sou lida por pessoas muito jovens, e meu ofício de
professora, me obriga a traduzir: Nonsense é um termo que significa
“sem sentido”, eu o uso aqui com um única intenção: favorecer a presença
de estranhezas na nossa língua. Lembro de Adorno falando que os
estrangeirismos são os judeus da linguagem e penso que uma das tarefas
da educação é colocar as pessoas em contato com conteúdos que não se
conhecem, com o que não é consensual, com o que pertence a uma outra
tradição, daí a importância de outras palavras, outros autores, outras
narrativas, outras visões de mundo. Ao mesmo tempo, eu penso, naqueles
que, prepotentemente, sentam sobre o ovo da ignorância para chocá-lo,
aqueles que não tem a mínima curiosidade sobre nada, que não tem relação
alguma com o conhecimento… Penso que, agora, se eu sugerisse a um deles
que revisse sua proposta como um caso de nonsense, que ele nem sequer
me ouviria, e que talvez simplesmente me jogaria de volta o que tinha
ouvido como quem é incapaz de avaliar a si mesmo a partir da crítica. E
eu digo crítica, com todo o respeito, por que se trata de respeito: a
crítica está no extremo oposto do rebaixamento da linguagem a xingamento
que vemos por todos os lados… )
Eu preferia encontrar uma expressão em outra língua, gostaria de ter
cultura africana, ameríndia, gostaria de poder usar outra epistemologia –
e talvez o leitor me ajude a encontrar – para definir melhor o que
chamamos de “nonsense”. Como será que o pensamento ameríndio se
relaciona com o que não tem sentido? Será que para as cosmologias
brasileiras há essa questão? Coloco a questão dentro desses limites da
minha expressão para deixar claro que há muito a ser pensado além
daquilo que acreditamos e que nos habituamos a compreender dentro da
nossa pobre epistemologia, inclusive aquela do senso comum, a partir da
qual sempre partimos. Uso a expressão “nonsense” por falta de termo
melhor e peço desculpas por meus limites. Se conhecer a própria
ignorância é sempre um antídoto contra a prepotência, então, procuro o
meu caminho.
O nonsense, a meu ver, nos ajuda aqui a entender a estratégia que
está em jogo na invenção bizarra do Estatuto da Família. E peço a
atenção do leitor para ver se consigo, humildemente, colocar o meu
argumento.
Primo Levi e os sapatos
Lembro de uma das histórias contadas por Primo Levi, sobrevivente do
campo de concentração de Auschwitz na Alemanha nazista. Das tantas
histórias de violência que ele nos conta em “É isso um homem?” uma
sempre me deixou muito impressionada. É a história dos sapatos.
Ao chegar no campo de concentração ele e seus companheiros são
despidos de tudo, roupas, objetos pessoais em geral. Mas com os sapatos
ocorre algo muito estranho. Os soldados ordenam que os homens despidos,
separados por dois metros de distância uns dos outros, disponham seus
sapatos com cuidado para que não sejam roubados. Primo Levi fala de como
ficou estarrecido tentando entender quem poderia roubar sapatos ali,
naquelas circunstâncias. Um alemão manda que coloquem os sapatos em um
canto. Os prisioneiros obedecem. Então, acontece o absurdo. Com uma
vassoura, outro alemão vem e varre os sapatos para fora. São 96 pares de
sapatos que se misturam para nunca mais serem encontrados.
O absurdo continua. Com o tempo, vivendo no campo, os prisioneiros
poderão encontrar, com a permissão de um único golpe de olho, um único
sapato que poderá servir em um dos seus pés. No campo, diz Levi, “a
morte começa pelos sapatos” que passam a ser instrumentos de tortura e,
ao mesmo tempo, objetos valiosos no frio e nas demais condições abjetas a
que os prisioneiros são condenados. Primo Levi está falando do uso do
nonsense para humilhar aquelas pessoas ali presas. Está falando de como
era importante perturbar aquela gente toda para que se submetessem, como
baratas tontas, ao que estivesse por vir.
Os prisioneiros nunca mais encontraram seus pares de sapatos. Isso
quer dizer, nunca puderam recuperar nada, nem sequer a capacidade de
compreender. Porque não havia nada para compreender diante da
aniquilação.
Talvez possamos pensar nesses pares de sapatos a reencontrar. Talvez
eles possam ser o símbolo da esperança de que, apesar de todos os
esforços de nos enlouquecer, ainda permanecemos capazes de entender. Que
poderemos ir além do estarrecimento.
Auschwitz é aqui.
Todo mundo sabe que Auschwitz também se tornou uma metáfora. Podemos
dizer, então, que Auschwitz é aqui. Jovens negros assassinados, a
matança dos indígenas, das travestis, das mulheres, dos homossexuais,
fazem parte de um projeto de extermínio que conhecemos bem.
Esse projeto de extermínio não funcionará sem causar confusão mental, tanto psíquica quando teórica na população.
Causar confusão é uma estratégia tão interessante quanto canalha.
Estratégia do poder para diluir a capacidade de pensar. Minar o
entendimento.
O fascismo elevado a forma do jogo político é isso: ele precisa
confundir você antes de te exterminar. A televisão, meio de comunicação
que precisamos compreender e ocupar mais do que nunca, visa diluir a
capacidade de pensar, minar o entendimento. Que ela nos distraia é
apenas o lado mais suave da incrível confusão mental que ela produz. Sua
estratégia é não apenas mentir, mas também provocar confusão mental,
tanto teórica quanto psíquica.
Ora, qual a função básica do Estatuto da Família, bem como de
todas essas PLs bizarras que nos assustam hoje? Qual o propósito dos
deputados neofundamentalistas do congresso brasileiro atual?
Não é privilegiar um tipo único de família. Isso é o de menos. Não é
apenas construir uma fachada para a manutenção da corrupção da qual eles
são os mais espertos mafiosos ocultos atrás de um discurso religioso
vulgaríssimo. Não é somente humilhar a forma alheia de amar, nem somente
ocultar sua própria estratégia de culpabilização que leva mais fiéis à
igreja e às urnas e às televisões e, assim, à publicidade e ao consumo e
a todo o dispositivo do capital. A família é um grande negócio, sabemos
disso desde todos os tempos e de todas as igrejas, e de todas as
propagandas de margarina…
As igrejas neopentecostais usam as mesmas estratégias que todas as
igrejas já usaram das quais só a garantia de um estado laico pode nos
proteger. Verdade que sem o estatuto da família o grande negócio das
igrejas neopentecostais corre o risco de falir, mas há mais que isso.
Além de envergonhar os evangélicos democráticos e progressistas, além
de manter os fiéis das igrejas submetidos à ignorância, a tentativa de
definir o que é família e de impor um estatuto sobre ela, um estatuto
evidentemente baseado no ódio ao outro, se sustenta não apenas na
confiança no poder da ignorância, mas nesse desentendimento geral criado
pelo estado de “nonsense”. É importante que não haja reflexão, que
ninguém entenda o que está se passando, que todos fiquem perplexos
enquanto outros não se importem. Tenho visto tantos ativistas
estarrecidos e impotentes, mas eles não param de lutar porque sabem que
tudo o que este estado de nonsense pede é que deixemos a esperança de
lado e que entreguemos os pontos. Nos termos de Primo Levi, que não
procuremos os nossos sapatos que compõem um par.
Todos os capitalismos e todas as religiões sempre tentaram abusar das
famílias, inventam-nas, tanto quanto as desejam destruir. Esse jogo
sujo continua com agentes no poder que sabem manipular o estado de
exceção. Contra isso, apenas a luta diária que não pode ter fim. Ela é a
luta da reflexão contra a estupidez, a luta política contra a
antipolítica, a luta ética que implica o reconhecimento do outro contra a
morte, a sua morte projetada na humilhação diária em nome da
ignorância.
Márcia Tiburi, em http://revistacult.uol.com.br/home/
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