Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

CONVITE AO DESPRENDIMENTO

"Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os consomem, e onde os ladrões penetram e roubam..."
(Mateus: capítulo 6, versículo 19.)


Desprendimento na qualidade de desapego, não de estroinice nem dissipação.

Todo e qualquer motivo que ata à retaguarda sob condicionamentos retentivos se transforma em cadeia escravizante.

Os objetos a que o homem se apega valem os preços que lhe são emprestados, constituindo-se elos a impedirem o avanço do possuidor, na direção do futuro...

Desapego, portanto, em forma de libertação do liame pessoal egoístico e tormentoso que constitui presídio e patíbulo para quem se fixa negativamente como para aquele que se faz sua vítima afetiva.

Doa com alegria quando possas, generosamente.

O que distribuis com equilíbrio e lucidez multiplica-se, o que reténs reduz-se.

Abundância, como excesso engendram miséria e loucura.

Distende, assim, mão generosa na alfândega da fraternidade, mas libera-te da emotividade desregrada, da posse afetuosa a objetos, animais e pessoas, porquanto carinhos que te mereçam, mais devoção que lhes dês, chegará o dia de atravessares o portal do túmulo, fazendo-o em soledade, livre de amarras ou jungido ao que se demorará a desgastar-se pela ferrugem, pelo azinhavre, corroído ou simplesmente em trânsito por outras mãos ante a tua tormentosa impossibilidade de reter e interferir.

Joanna d'Ângelis [Espírito], através de Divaldo Pereira Franco, no livro "Convites da Vida". 

DESAPEGO


Vivemos uma época de celebridades, apelos fáceis à riqueza, ao consumismo, às paixões avassaladoras. Transitamos aturdidos por um mundo em que o destaque vai para aquele que mais tem. E a todo o instante os comerciais de televisão, os anúncios nas revistas e jornais, os outdoors clamam: "Compre mais. Ostente mais. Tenha mais e melhores coisas.”. 

É um mundo em que luxo, beleza física, ostentação e vaidade ganharam tal espaço que dominam os julgamentos. Mede-se a importância das pessoas pela qualidade de seus sapatos, roupas e bolsas.  Dá-se mais atenção ao que possui a casa mais requintada ou situada nos bairros mais famosos e ricos. Carros bons somente os que têm mais acessórios e impressionam por serem belos, caros e novos. Sempre muito novos. 

Adolescentes não desejam repetir roupas e desprezam produtos que não sejam de grife. Mulheres compram todas as novidades em cosméticos. Homens se regozijam com os ternos caríssimos das vitrines. Tornamo-nos, enfim, escravos dos objetos. 

Objetos de desejo que dominam nosso imaginário, que impregnam nossa vida, que consomem nossos recursos monetários. E como reagimos? Será que estamos fazendo algo - na prática - para combater esse estado de coisas? 

No entanto, está nos desejos a grande fonte de nossa tragédia humana. Se superarmos a vontade de ter coisas, já caminhamos muitos passos na estrada do progresso moral. 

Experimente olhar as vitrines de um shopping. Olhe bem para os sapatos, roupas, jóias, chocolates, bolsas, enfeites, perfumes. Por um momento apenas, não se deixe seduzir. Tente ver tudo isso apenas como são: objetos. E diga para si mesmo: “Não tenho isso, mas ainda assim eu sou feliz”. “Não dependo de nada disso para estar contente”. 

Lembre-se: é por desejar tais coisas, sem poder tê-las, que muitos optam pelo crime. Apossam-se de coisas que não são suas, seduzidos pelo brilho passageiro das coisas materiais. Deixam para trás gente sofrendo, pessoas que trabalharam arduamente para economizar... 

Deixam atrás de si frustração, infelicidade, revolta.  Mas, há também os que se fixam em pessoas. Vêem os outros como algo a ser possuído, guardado, trancado, não compartilhado. Esses se escravizam aos parceiros, filhos, amigos e parentes. Exigem exclusividade, geram crises e conflitos. Manifestam, a toda hora, possessividade e insegurança. Extravasam egoísmo e não permitem ao outro se expressar ou ser amado por outras pessoas. 

É, mais uma vez, o desejo norteando a vida, reduzindo as pessoas a tiranos, enfeiando as almas. Há, por fim, os que se deixam apegar doentiamente às situações. Um cargo, um status, uma profissão, um relacionamento, um talento que traz destaque. É o suficiente para se deixarem arrastar pelo transitório. Esses amam o brilho, o aplauso ou o que consideram fama, poder, glória. Para eles, é difícil despedir-se desse momento em que deixam de ser pessoas comuns e passam a ser notados, comentados, invejados. 

Qual o segredo para libertar-se de tudo isso? A palavra é desapego. Mas... Como alcançá-lo nesse mundo? Pela lembrança constante de que todas as coisas são passageiras nessa vida. Ou seja: para evitar o sofrimento, a receita é a superação dos desejos. 

Na prática, funciona assim: pense que as situações passam, os objetos quebram, as roupas e sapatos se gastam. Até mesmo as pessoas passam, pois elas viajam, se separam de nós, morrem... E devemos estar preparados para essas eventualidades. É a dinâmica da vida. 

Pensando dessa forma, aos poucos a criatura promove uma auto-educação que a ensina a buscar sempre o melhor, mas sem gerar qualquer apego egoísta. Ou seja, amar sem exigir nada em troca. 

Texto da Redação do Momento Espírita.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

UM RETALHO DE RUBEM ALVES

"A fala do poder não nos causa embaraço algum. Sobre ela não paira nenhum interdito. Tanto que, ao que me consta, as autoridades eclesiásticas, até o momento, não lançaram proibições sobre os rambos da vida nem sobre aqueles que se dedicam à fabricação das armas. No entanto, pudicos parlamentares evangélicos se movimentaram para que se retirassem, no salão do congresso, telas que mostravam os seios nus das mulheres, enquanto conservadores e liberais católicos se uniram para impedir a apresentação de Je vous salue, Marie! Camisinhas de vênus são terrores infernais maiores que a violência do poder. Como disse alguém, censor é aquele que corta a cena quando o mocinho beija o seio da mocinha e deixa a cena quando o mocinho corta o seio da mocinha. Brinco coma  insólita possibilidade de que o discurso político tenha a função não confessada de silenciar o discurso erótico. É sintomático que, até agora, tanto as teologias conservadoras quanto as revolucionárias não tenham sido capazes de elaborar um discurso prazeroso, e muito menos um discurso sobre o prazer. A ética e a política parecem-me ser a continuação moderna do ascetismo que faz silêncio sobre as vozes do corpo". 

Rubem Alves, no livro: Se eu pudesse viver minha vida novamente..., página 45.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

JUSTAMENTE POR ISSO

 "Não vos escrevi porque ignorásseis a verdade, 
mas porque a conheceis. - (I João, 2:21)

O intercâmbio cada vez mais intensivo entre os chamados “vivos” e “mortos” constitui grande acontecimento para as organizações evangélicas de modo geral.

Não é tão-somente realização para a escola espiritista; pertence às comunidades do Cristianismo inteiro. 
Por enquanto, anotamos aqui e ali protestos do dogmatismo organizado entretanto, a revivescência da verdade assim o exige. 

Toda aquisição tem seu preço e qualquer renovação encontra obstáculos espontâneos.
 
Dia virá em que as várias subdivisões do evangelismo compreenderão a divina finalidade do novo concerto.

O movimento de troca espiritual entre as duas esferas é cada vez mais  dilatado. O devotamento dos desencarnados provoca a atenção dos encarnados.

O Senhor permitiu mundial Pentecostes para o reajustamento da realidade  eterna.
 
Convém  notar,  contudo,  que  as  vozes  comovedoras  e  revigorantes  do  Além  repetem,  comumente,  velhas  fórmulas  da  Revelação  e  relembram  o passado da Sabedoria terrestre, a fim de extrair conceituação mais respeitável referentemente à vida. 

É  neste  ponto  que  recordamos  as  palavras  de  João,  interrogando sinceramente: comunicar-se-ão os “mortos” com os “vivos”, porque os homens ignoram a verdade?

Isso não.
 
Se os que partem falam novamente aos que ficam é que estes conhecem o  caminho da redenção com Jesus, mas não se animam, nem se decidem a trilhá-lo. 

Emmanuel (Espírito), através de Francisco Cândido Xavier, 
no livro: Pão Nosso, capítulo 96.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O BEM E O MAL





Questão de alta complexidade para a criatura hu­mana, o dualismo do bem e do mal encontra-se ínsito na sua psicologia interior, confundindo-a e perturban­do-lhe, não raro, o discernimento.


Com características metafísicas, na sua formulação abstrata, essa dualidade concretiza-se nos atos do ser, gerando fenômenos relevantes de consciência, que con­tribuem para o equilíbrio ou a desordem psíquica, de acordo com as suas respectivas manifestações.


Em todos os períodos da cultura ancestral encon­tramos o esforço da religião e do pensamento tentan­do estabelecer os paradigmas em que se apoiam um e outro, para melhor explicá-los.


Ontem, era uma abstração meramente filosófica ou religiosa, passando, mais tarde, a fazer parte da ética, no capítulo da moral, avançando historicamen­te até interessar à sociologia, ao comportamentalis­mo, à psicologia.


O código de Hamurabi, inscrito em uma estela de diorito, já definia as ações louváveis e as reprochá­veis, simbolizando o bem e o mal, com as respectivas consequências legais no comportamento humano em relação à criatura em si mesma, à sociedade e ao seu próximo.


Entre medos e persas — o livro sagrado Zend­Avesta separava a mesma dualidade nas personifi­cações de Ormuzde — ou representação do bem — e Ariman — ou personificação do mal —, em cuja luta o último seria submetido e por consequência elimina­do.


A Bíblia, por sua vez, representa o bem nas dei­dades angélicas e o mal, nas demoníacas, ambas, no entanto, sob o controle de Deus, contra Quem se rebe­lara Lúcifer que, expulso do paraíso, tornou-se-Lhe o adversário temerário...


A Metafísica Tradicional, analisando a Criação, estabeleceu os dois princípios, do bem e do mal, que se vinculam ao conciliador, no vértice superior do sim­bólico triângulo isósceles.


Logo depois, a interpretação chinesa apresentou-os nas duas admiráveis forças cósmicas: o Yang — masculino, positivo, seco, bom — e o Yin — feminino, úmido, negativo, frio —, que se conciliam sob o coman­do da suprema perfeição ao confundirem-se, gerando a harmonia.


Inspirada no hinduísmo, a Trilogia da Criação apresenta Brama como Plenipotente, o Princípio Su­premo, e as duas forças antagônicas, Vishnu, o Con­serva dor, ou princípio construtor e Shiva, o Destruidor, ou princípio aniquilador dos seres, em perene luta até a supremacia do edificador...


Das concepções pretéritas à realidade presente, filosoficamente o bem é tudo quanto fomenta a bele­za, o ético, a vida, consoante a moral, e o mal vem a ser aquilo que se opõe ao edificante, ao harmônico, ao bem.


Sociologicamente o bem contribui para o progres­so, e todas as realizações que promovem o ser, o gru­po social e o ambiente expressam-lhe a grandeza, a ação concreta que resulta da capacidade seletiva de valores éticos para a harmonia e a felicidade.


Como efeito, o mal decorre de todo e qualquer fe­nômeno que se opõe ou conspira contra esse contri­buto superior.


A Psicologia não poderia ficar indiferente a essa dualidade que existe no ser humano, remanescendo como as suas aspirações de crescimento e elevação, do nobre e equilibrado, do saudável e propiciador de paz.


Ao mesmo tempo, o atavismo dos instintos agres­sivos propele-o para a violência — quando deseja pos­suir —, para o vilipêndio — quando se sente diminuído —, para o grotesco e vulgar — quando derrapa no me­nosprezo de si mesmo...


Desenvolvendo, no entanto, a consciência que sai do torpor de nível de sono sem sonhos, imediatamente começa a perceber os valores que compensam e os que conflitam o comportamento psicológico, impul­sionando-o, embora lentamente, para a adoção de conduta mental e física, idealista e comportamental do bem, tornando-se instrumento útil no grupo soci­al, que se promove e eleva-o a estágio superior, per­mitindo-lhe aspirar sempre a mais e melhor.


Esse discernimento, que resulta da consciência em libertação dos condicionamentos escravizadores, am­plia a capacidade para identificar o bem e o mal, pre­dispondo-o à eleição do primeiro em detrimento do ou­tro.


Se, por acaso, incorre em equívocos de seleção e tomba nas malhas do mal, mesmo que sob as circuns­tâncias perturbadoras do ódio, do medo, da angústia, da volúpia, da desordem interior, ao descobrir-se em falta, faz o quadro de consciência de culpa e sofre as patologias afugentes, que se lhe tornam mecanismos reparadores.


Afirma-se, porém, que a linha divisória entre o bem e o mal é tão fluida e oscilante que, não raro, o bem de hoje torna-se o mal de amanhã e vice-versa, numa di­alética sofista, que se poderia considerar anárquica...


Certamente, muitos códigos e leis, de acordo com as conveniências de grupos e castas, de partidos e raças, de religiões e credos, por questões imediatis­tas, tentam tornar legais comportamentos que não são morais e, reciprocamente, justificando-se atitu­des vulgares e tentando liberar-se comportamentos alienados, condutas extravagantes e arbitrárias.


O Decálogo moisaico, no entanto, sintetiza os có­digos moral e legal, portanto, o que é bem e o que é mal, havendo facultado a Jesus afirmar, em grandio­sa proposta, toda a complexidade desse fenômeno dual: — Não fazer a outrem o que não deseja que ele lhe faça.


Porque ainda injustos os homens, as leis que ela­boram possuem os seus parcialismos, defecções, de­vendo ser respeitadas, sem que a algumas delas se atribuam reais valores morais, significativos e defini­dores do bem e do mal.


O bem e o mal estão inscritos na consciência hu­mana, em a natureza, na sua harmoniosa organiza­ção que deu origem à vida e a fomenta.


Tudo quanto contribui para a paz íntima da cria­tura humana, seu desenvolvimento intelecto-moral, é-lhe o bem que deve cultivar e desenvolver, irradian­do-o como bênção que provém de Deus.


E esse mal, aliás transitório, temporal, que o propele às ações ignóbeis, aos sofrimentos, é rema­nescente atávico do seu processo de evolução, que será ultrapassado à medida que amadureça psicolo­gicamente, e se lhe desenvolvam os padrões de sen­sibilidade e consciência para adquirir a integração no Cosmo, liberado das injunções dolorosas, inferiores.

Joanna D'Angelis, Espírito, através de Divaldo Pereira Franco, no livro: Ser Consciente.

NÃO RESISTAIS AO MALIGNO



É esta, certamente, uma das palavras mais enigmáticas do Nazareno, das menos

compreendidas, e ainda menos praticadas, sobretudo no ocidente cristão essencialmente violentista. No número de abril de 1959, da célebre revista mensal Stimmen der Zeit, dos padres jesuítas alemães, apare­ce um artigo, da autoria do jesuíta P. Hirschmann, provando que a guerra atômica pode ser lícita, no caso em que seja necessária para salvar o Cristianismo sobre a face da terra. No mesmo sentido escreve o jesuíta P. Gundlach, que foi conselheiro espiritual do Papa Pio 12º, afirmando que a guerra atômica, e mesmo a extirpação de um povo inteiro (naturalmente a Rússia!) é não somente lícita, mas pode até ser dever de consciência no caso em que esse povo seja um impedimento para o triunfo do Cristianismo.


O que inspira semelhantes monstruosidades, oficialmente aprovadas pela respectiva igreja, é a clamorosa confusão entre “Cristianismo” e “Cristo”. Por “Cristianismo” entendem esses autores uma deter­minada organização eclesiástica, engendrada, atra­vés dos séculos, por hábeis teólogos e devidamente codificada pelos chefes hierárquicos dessa sociedade eclesiástica. A fim de preservar da destruição essa organização político-financeiro-clerical apregoam esses homens a liceidade da destruição do espírito do Cristo, que em hipótese alguma aprovaria a morte de um único ser humano, menos ainda a extinção de muitos milhões de inocentes, a fim de salvar o reino de Deus. Como se pode salvar o verdadeiro Cristianismo, que é o reino de Deus, destruindo-o radicalmente pela matança em massa.Por onde se vê que esses doutores em teologia eclesiástica são perfeitos analfabetos na suprema sabedoria do Sermão da Montanha, e do Evangelho do Cristo em geral.


O gentio Mahatma Gandhi, não permitindo a morte de um só homem para libertar a Índia, compre­endia mil vezes melhor o espírito do Cristo do que esses chamados “cristãos”, razão por que declarava a todos os missionários do ocidente que procuravam convertê-lo ao Cristianismo: “Aceito o Cristo e seu Evangelho — não aceito o vosso Cristianismo.”



*



“Não resistais ao maligno!”...

Nenhuma igreja, nenhum Estado cristão aceitou, até hoje, essa doutrina do divino Mestre. Todos praticam violência, por sinal que todas as sociedades, civis e eclesiásticas, se guiam, até hoje, pela lei do talião, estabelecida por Moisés, “olho por olho, dente por dente”. Aliás, parece mesmo que uma sociedade organizada não pode guiar-se pelo espírito do Evangelho do Cristo, porque qualquer sociedade organizada é baseada sobre o egoísmo, que aprova à violência; parece que só um indivíduo pode ser realmente crístico, não violentista. A sociedade tem determinados estatutos, leis, parágrafos jurídicos, que implicam sanção, isto é, violência, punição aos infratores dos estatutos jurídicos da sociedade. Sendo que toda a sociedade é produto da inteligência e a inteligência é, essencialmente, egoísta, não pode haver uma sociedade não-egoísta, não-violentista. Se Mahatma Gandhi conseguiu libertar a Índia com ahimsa (não-violência) foi unicamente porque, ao redor dele, havia numerosos indivíduos firmemente alicerçados na mesma verdade, como concebeu o próprio Presidente Nehru, e não porque a sociedade como tal se guiasse pelo princípio altruísta da ahimsa. Toda e qualquer sociedade, como sociedade, pratica necessariamente himsa (violência), sob pena de se destruir a si mesma, não fazendo valer as suas leis; só um indivíduo pode praticar ahimsa, não pagando mal com mal, mas pagando o mal com o bem, amando aos que o odeiam.


“Não resistir ao maligno” é, pois, uma ordem que visa diretamente o indivíduo em vias de cristifi­cação. Uma sociedade, sendo fundamentalmente egoísta, nunca pode ser crística, embora possa dizer-se cristã, isto é, egoísta envernizada de Cristianismo.


Nenhuma sociedade organizada pode abrir mão dos seus “direitos”, sob pena de cometer suicídio, ela só existe em virtude dos seus “direitos”; o direito, porém, é uma forma de egoísmo, e egoísmo gera violência. Só se a sociedade abdicasse dos seus “direitos”, tudo endireitaria; mas, enquanto ela faz valer os seus “direitos”, tudo está torto.


O contrário do “direito” é a “justiça”, que é praticamente idêntica ao amor. A “justiça”, no sentido bíblico, é invariavelmente a “justeza”, o perfeito “ajustamento”, a harmonia entre o indivíduo e o Universal, entre o homem e Deus, entre a creatura finita e o Creador Infinito. Essa justiça, porém, é o perfeito amor, como aparece no “primeiro e maior de todos os mandamentos”, enunciado por Jesus.


No frontispício do Fórum da cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, se acham gravadas estas palavras do jurista-filósofo Cícero: Summum jus —Summa injuria (o supremo direito é a suprema injustiça). Quem reclama todos os seus direitos pessoais, age em nome de seu ego, que é necessaria­mente egoísta; mas quem pratica a justiça, age em nome da Constituição Cósmica do Universo, age em nome da própria alma do Universo, que é Deus; age, em nome do amor cósmico, que é a voz do divino Eu no homem.


Quem apela para seus “direitos” age em nome do ego, que é violentista.


Quem apela para a “justiça” age em nome do Eu, que não é violentista.


“Não resistir ao maligno” é, pois, um apelo para o divino Eu no homem, e não para seu humano ego.



*



          Há, na legislação mosaica, uma matemática estranha: supõe que uma violência se neutralize com outra violência. Se alguém me arranca um olho ou quebra um dente, e eu lhe arrancar também um olho e quebrar um dente, estamos quites; porque cobrei do meu devedor uma divida em aberto.

             
          Na realidade, porém, não estamos quites, nem eu nem ele, porque um negativo dele mais um negativo meu dão dois negativos; quer dizer que nós dois meu ofensor e eu, ofensor dele, criamos dois males no mundo; e, como a segunda ofensa exige uma terceira, da parte dele, e essa reclama uma quarta ofensa, da minha parte, e assim por diante, numa indefinida “reação em cadeia” — é claro que nós dois, o ofensor de lá e o ofensor de cá, vamos piorando o mundo cada vez mais, enchendo-o de negativos e mais negativos.


Contra essa falsa matemática de Moisés opõe Jesus a verdadeira matemática, absolutamente lógica e racional, afirmando que o negativo (mal) só se neutraliza pelo positivo (bem), e que o único modo de melhorar o mundo e a humanidade é pelo processo de: 1) não resistir ao mal; 2) de opor o bem ao mal. O meu positivo oposto ao negativo do meu ofensor neutraliza esse negativo, e o resultado é zero; mas, se eu opuser ao negativo do ofensor não apenas um positivo (um bem), porém, muitos —digamos 10 — neste caso não somente neutralizei o negativo (mal) dele, mas ainda há um superavit de positivos, isto é, enriqueci a humanidade de bens positivos.


Mahatma Gandhi — precisamente por ser Mahatma, “grande alma” — compreendeu e praticava admiravelmente essa matemática espiritual do Evan­gelho do Cristo, dando à não-resistência o nome sânscrito de ahimsa e à política benevolência para com o ofensor o nome de satyagraha (apego à verdade), ou seja amor, justiça cósmica.


Naturalmente, para que alguém possa praticar essa não-violência e essa benevolência, tem de passar por uma profunda experiência mística sobre a sua verdadeira natureza, e não se identificar com seu ego físico-mental-emocional.

Huberto Rohden, no livro, Sermão da Montanha.

O MANIQUEÍSMO: O BEM, O MAL E SEUS EFEITOS ONTEM E HOJE



Temo o homem que só conhece um livro (Timeo hominem unius libri). - Sto. Tomás de Aquino
É possível que os primeiros homens não nasceram com inteligência. Esta foi construída ao longo de sua história de hominização. A evolução de qualquer criança em todos os tempos e culturas, que evolui do mais simples para o mais complexo pensamento abstrato ou simbólico, deve estar ainda acontecendo com o ser humano, ou seja, ainda estamos em processo de evolução de nossa capacidade de raciocínio, de convivência com as diferenças de raça, cultura, religião, língua ou modo de ser.
Desde o seu surgimento, o homem é movido por duas lógicas, consciente e inconsciente. O homem, primeiramente instintivo e passional, foi sendo recoberto pela consciência e razão. Mas essa razão ainda não conseguiu determinar a totalidade de seus atos. Ou seja, o irracional cujo efeito são as passagens aos atos ainda domina grande parte do existir humano. Freud descobriu que somos resultantes de dois princípios psíquicos opostos que lutam entre si: os Princípios de Prazer ou do Gozo e o de Realidade. E, ainda, haveria uma luta entre essas duas e a leis da cultura, cujo base inaugural teria surgido com a proibição do incesto.
Esse jogo de forças - do desejo e da cultura - sempre foi complicado para as culturas entender, resolver ou administrar. Tradicionalmente a cultura resolveu, reprimindo, regrando, punindo, etc. Foi preciso muito tempo, experiências e debate para que algumas culturas e sujeitos aprendessem a conviver com o seu próprio desejo, com o erótico, com as diferentes sexualidades, especialmente com a mulher. Todas as culturas ainda têm dificuldade de aceitar que o Bem e o Mal constituem o todo do ser humano. As pulsões e desejos humanos sempre foram tidos como forças demoníacas. Na antiguidade, o demônio nada tinha a ver com o diabo, era um ser inspirador ou era quem vetava as más atitudes. Sócrates, no séc. 5 antes de Cristo, dizia que o daimon o guiava ao bem e vetava suas tendências mal pensadas. Só mais tarde é que interesses mais políticos que religiosos, fizeram acontecer a fusão do demônio como o diabo, satã, etc.
Um dos mecanismos mais utilizados pelo ser humano para se livrar do Mal é a projeção de sentimentos ou figuras inexistentes como operadores simbólicos do psiquismo. A atividade psíquica que sustenta a projeção é de ordem inconsciente, tal como todos os demais mecanismos de defesa. Odiar o vizinho, ou não aceitar uma tendência sexual, ser invejoso, etc. poderia forçar o psiquismo a projetar essas ideias e sentimentos em outras pessoas, personificadas enquanto diabo, satã, enfim o Mal. Uma nação inteira pode ser tomada pelo histerismo de projetar numa só figura o Mal que, no fundo, é dela mesma. Mas, ela própria não se dá conta disso, visto ser uma ação made in inconsciente que demanda purificação de Mal.
Maniqueísmo: a luta entre o Bem e o Mal
O maniqueísmo é uma forma de pensar simplista em que o mundo é visto como que dividido em dois: o do Bem e o do Mal. A simplificação é uma forma primária do pensamento que reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é. A simplificação é entendida como forma deficiente de pensar, nasce da intolerância ou desconhecimento em relação a verdade do outro e da pressa de entender e reagir ao que lhe apresenta como complexo. "A pressa de saber obstrui o campo da curiosidade e liquida a investigação em muito pouco tempo", declara o psicanalista W. Zusman (A terra sob o poder de Mani, JB/s.d.). A pressa não é só inimiga da perfeição, é também inimiga do diálogo, do pensamento mais elaborado, sobretudo, filosófico e científico.
O maniqueísmo é uma forma religiosa de pensar; não como religião autônoma, mas enquanto comandos camuflados que influenciam os discursos do cotidiano, inclusive as religiões formais e seitas. 
Mani (Manes ou Manchaeus), nascido na Pérsia, no século III, fundou  uma religião, o maniqueísmo, após ter sido "visitado" duas vezes por um anjo que o convocou para esta tarefa, fato este comum entre aqueles que fundam religiões e seitas até hoje. A religião maniqueísta se difundiu pelo Império Romano e pelo Ocidente Cristão. O maniqueísmo combina elementos do zoroastrismo, antiga religião persa, e de outras religiões orientais, além do próprio Cristianismo. "Possui uma visão dualista radical, segundo a qual o mundo está dividido em duas forças: o Bem (luz) e o Mal (trevas) como entidades antagônicas em perpétua luz. Luz e trevas no sistema maniqueísta não são figuras retóricas, são representações concretas do Bem e do Mal. O Reino da Luz e o Reino das Trevas estão em permanente conflito. É dever de cada ser humano entregar-se a esse eterno combate para extinguir em si e nos outros a presença das Trevas afim de poder alcançar o Reino da Luz, que é o Reino de Deus. No maniqueísmo, os homens "eleitos" irão purificar o Bem, com uma vida de castidade, renúncia a família, alimentação especial, etc.
A expressão maniqueísmo ganhou uso corrente  ao definir aquele tipo de pessoa ou aquele tipo de pensamento de estruturação dualista que reduz a vida (ou alguns de seus aspectos) a pares antagônicos irreconciliáveis, tipo: direita/esquerda, corpo/mente, reacionário/progressista, belicista/pacifista, fiel/infiel, capitalista/comunista, individualismo/coletivismo, branco/negro, ariano/judeu, raça superior/raça inferior, objetivo/subjetivo e assim por diante. "É evidente que não se pode deixar de reconhecer a existência daquilo que cada um desses pares antiéticos nomeia, mas o pensamento maniqueísta vai além na medida em que considera que um lado deve destruir o outro, porque um é Luz e o outro Trevas" (Zusman), um é o Bem e o outro é o Mal.
Por exemplo, a propaganda nazista contra os judeus plantou no inconsciente do povo alemão o que este já continha de preconceito e racismo.  Primeiramente, o alemão ariano e cristão tinha herdado a crença de que os judeus eram os assassinos de Cristo e representavam o diabo ou todas as forças do mal, na terra. Assim como Cristo comanda o mundo espiritual, o diabo comanda o mundo material - dinheiro, poder e sexo.  Segundo, os judeus foram associados a esses três elementos materiais, principalmente o dinheiro. No período nazista, as crianças alemãs eram educadas para estigmatizar os judeus, com desenhos e histórias associando-os ao mal ou ao diabo. Terceiro, a propaganda nazista foi sistemática contra os judeus, explorando o simplismo do pensamento maniqueísta. Começaram associando os judeus a traças, piolhos e vermes que "corroíam a economia alemã", em verdade, tal propaganda  preparava o espírito coletivo alemão para a chamada "solução final" ou medida "higiênica" de extermínio em massa de todo o povo judeu, segundo análise de Robert Vistrich, da Universidade de Jerusalém.
Outro exemplo, no período da guerra fria, o presidente norte-americano, R. Reagan, fazia declarações apontando os soviéticos como a encarnação do demônio. Depois, o Bush pai, fez o mesmo com Saddam Hussein. Hoje, o Bush filho, personifica o Mal em Osama bin Laden e declara em bom discurso maniqueísta de que "quem não está com os EUA, está a favor dos terroristas. Os fundamentalistas islâmicos usam do mesmo maniqueísmo com os norte-americanos, chamando-os de "grande Satã" e Israel de "pequeno Satã". São mais que discursos, são preparativos para ações de destruição do mal em nome do bem. Sendo o maniqueísmo uma simplificação do modo de pensar a vida todo o sistema social que sobre ele se monta é necessariamente dogmático, violento, intolerante e também fadado ao desmoronamento.
O maniqueísmo não se sustenta por muito tempo, devido ao seu dogmatismo, isto é, sua incapacidade de colocar à prova da realidade ou da lógica, suas verdades simplificadas. Como seu pensamento está reduzido a um par de verdades antagônicas, aceitar o raciocínio do outro, discordante, significa deixar-se arrastar para o domínio do mal e ser por ele tragado. A vida do maniqueísta se converte em uma prontidão de vigilância (paranoia) constante para não se deixar iludir com os "discursos sedutores".  Santo Agostinho que inicialmente foi maniqueísta, depois de ter se afastado, escreveu em Confissões (livro 7) que, nessa doutrina "não tinha encontrado paz e apenas expressava opiniões alheias".
Atualidade do maniqueísmo
O modo de pensar maniqueísta é oportunista em todos os espaços humanos. Ele demonstra ter mais força quando vivemos situações-limite, desesperança, ódio extremo, ou falta de perspectiva quanto ao futuro. Nesses momentos, a mente regride às origens, em busca de soluções mágicas, simplistas, libertadoras de angústia. A história alerta que, até pessoas sofisticadas intelectualmente e nações cientificamente avançadas, como EUA, Alemanha, Israel, foram levadas pela onda histérica maniqueísta. Os sintomas aparecem nos discursos: "infinita justiça", "cruzada contra o terror", "guerra santa [Jihad] contra o império do mal", a alegria de antiamericanos após o ataque a Nova York e pseudo-análises comparando as mortes desses ataques com as de outras partes do mundo, etc. Leonardo Boff, ex-frei franciscano, prolífico escritor, guru da teologia da libertação, atualmente teólogo e ambientalista, em recente entrevista no jornal O Globo, num acesso de ira ideológica que não condiz com o autêntico espírito do cristianismo disse: ''Acho muito pouco cair um avião sobre o Pentágono. Deveriam cair 25 aviões. É preciso destruir o Pentágono todo.'' Segundo a crítica de Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, não foi um escorregão retórico, a tese é defendida ''racionalmente'' mais adiante colocando o Pentágono e as torres do WTC como símbolos de um sistema que precisa ser destruído para acalmar a perplexidade da humanidade.
Escreve Dines: "O compassivo teólogo sabe que os aviões não caíram do céu empurrados pela Divina Providência, foram jogados por alguém. Sabe também que nesses edifícios, com apenas três Boeings, foram assassinadas milhares de pessoas. A hecatombe que propõe não é arquitetônica ou mero saneamento urbanístico. Com seus 25 aviões está sugerindo um verdadeiro genocídio em nome da proposta de unir espiritualidade, justiça social e defesa do meio ambiente. A hecatombe que propõe não é arquitetônica ou mero saneamento urbanístico. Com seus 25 aviões está sugerindo um verdadeiro genocídio em nome da proposta de unir espiritualidade, justiça social e defesa do meio ambiente".
Enfim, todos saímos perdendo ao ler falsas análises - ou meras opiniões fundadas no pensamento maniqueísta. Alguns fazem comparações absurdas de Bin Laden como se fosse o Che Guevara de hoje. Ora, colocar ambos no mesmo saco é o mesmo erro que chamar um chinês de japonês ou um cearense de baiano. Bin Laden é de origem aristocrática, nunca se preocupou com a pobreza e é um seguidor  fanático do Alcorão que ele interpreta como quer. Já Che Guevara era um médico que se tornou um guerrilheiro marxista, um sonhador da erradicação da pobreza; seu método de luta não matava inocentes tal como faz o terror, mas os adversários em combate e, também questionava o valor da religião. Bin Laden nada tem de socialista, não tem projeto de uma sociedade progressista, em nada avança no pensamento dialético, muito ao contrário, como todo fundamentalismo religioso, no fundo é um proto-fascista. Che olhava para o futuro, já o Bin Laden quer levar a sociedade para um passado mítico - que nunca houve - segundo a promessa das escrituras sagradas.
Como alerta Zusman: "É mais fácil criar "mísseis inteligentes do que conquistar a inteligência que permite a superação do pensamento maniqueísta". É mais cômodo seguir os paradigmas estabelecidos do que rever os posicionamentos, reorganizar e contextualizar o pensamento, ter a coragem de reconhecer os erros ou até abandonar um posicionamento por outro melhor.
Portanto, mais que uma forma simplista e dogmática de pensar, o maniqueísmo propõe uma ação, uma luta eterna contra o Mal, personificado em algumas coisas, pessoas e situações. Na ação maniqueísta "vale tudo", até mesmo a violência extrema contra o Mal, que ele delira. A guerra e a tortura são os principais meios do maniqueísmo. Hitler, também acreditava ter uma grande missão de purificação da humanidade. "As lágrimas da guerra prepararão as colheitas do mundo futuro", escreveu.
K. Popper constata que " toda vez que o homem quis trazer o céu para a terra, fez reinar o inferno". Sabemos pela história que o pior inferno é aquele que mata, oprime e ordena, em nome do Bem contra o Mal. Nada é tão perigoso quanto a certeza, o dogmatismo, a fé cega ou louca.
Nietzsche propõe pensarmos para além do Bem e do Mal: "Perguntai aos escravos quem é o "mau"?, e apontarão a personagem que para a moral aristocrática é "bom", isto é, o poderoso, o dominador" (GM, pref. XI). Então, o Bem e o Mal, dependem da perspectiva e dos interesses de quem julga. Deveríamos nos colocar no lugar do outro. Por exemplo, por quê Bin Laden é um homem "mau" para o ocidente-cristão e, é herói "bom"  no oriente islâmico? Por quê algumas igrejas fazem show contra o Mal, mas terminam mais falando das terríveis forças do Mal do que do Bem?
A atitude cética parece ser o melhor remédio contra o maniqueísmo. O cético suspende o juízo, não toma partido, não se rende ao simplismo de encurralar o pensamento entre a paredes do Bem e do Mal, do certo e errado. Suspender o juízo não quer dizer inação; significa elaborar um melhor pensamento para além da solução dualista, ou seja, um agir com sabedoria. A educação e a cultura tem uma grande tarefa pela frente para prevenir o maniqueísmo.
Por Raymundo de Lima, Psicanalista e Professor da UEM, publicado em dezembro de 2001. Para acessar o texto original, clicar AQUI.