Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

quarta-feira, 18 de maio de 2016

A FELICIDADE NÃO É DESTE MUNDO


Não sou feliz! A felicidade não foi feita para mim! exclama geralmente o homem em todas as posições sociais. Isso, meus caros filhos, prova, melhor do que todos os raciocínios possíveis, a verdade desta máxima do Eclesiastes: “A felicidade não é deste mundo.” Com efeito, nem a riqueza, nem o poder, nem mesmo a florida juventude são condições essenciais à felicidade. Digo mais: nem mesmo reunidas essas três condições tão desejadas, porquanto incessantemente se ouvem, no seio das classes mais privilegiadas, pessoas de todas as idades se queixarem amargamente da situação em que se encontram.

Diante de tal fato, é inconcebível que as classes laboriosas e militantes invejem com tanta ânsia a posição das que parecem favorecidas da fortuna. Neste mundo, por mais que faça, cada um tem a sua parte de labor e de miséria, sua cota de sofrimentos e de decepções, donde facilmente se chega à conclusão de que a Terra é lugar de provas e de expiações.

Assim, pois, os que pregam que ela é a única morada do homem e que somente nela e numa só existência é que lhe cumpre alcançar o mais alto grau das felicidades que a sua natureza comporta, iludem-se e enganam os que os escutam, visto que demonstrado está, por experiência arqui-secular, que só excepcionalmente este globo apresenta as condições necessárias à completa felicidade do indivíduo.

Em tese geral pode afirmar-se que a felicidade é uma utopia a cuja conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem alcançá-la. Se o homem sábio é uma raridade neste mundo, o homem absolutamente feliz é nele ainda mais raro.

O em que consiste a felicidade na Terra é coisa tão efêmera para aquele que não tem a guiá-lo a sabedoria, que, por um ano, um mês, uma semana de satisfação completa, todo o resto se escoa numa seqüência de amarguras e decepções. E notai, meus caros filhos, que falo dos venturosos da Terra, dos que são invejados pela multidão.

Conseguintemente, se à morada terrena são peculiares as provas e a expiação, forçoso é se admita que, algures, moradas há mais favorecidas, onde o Espírito, conquanto aprisionado ainda numa carne material, possui em toda a plenitude os gozos inerentes à vida humana. Tal a razão por que Deus semeou, no vosso turbilhão, esses belos planetas superiores para os quais os vossos esforços e as vossas tendências vos farão gravitar um dia, quando vos achardes suficientemente purificados e aperfeiçoados.

Todavia, não deduzais das minhas palavras que a Terra esteja destinada para sempre a ser uma penitenciária. Não, certamente! Dos progressos já realizados, podeis facilmente deduzir os progressos futuros e, dos melhoramentos sociais conseguidos, novos e mais fecundos melhoramentos. Essa a tarefa imensa cuja execução cabe à nova doutrina que os Espíritos vos revelaram.

Assim, pois, meus queridos filhos, que uma santa emulação vos anime e que cada um de vós se despoje energicamente do homem velho. Deveis todos consagrar-vos à propagação desse Espiritismo que já deu começo à vossa própria regeneração. Corre-vos o dever de fazer que os vossos irmãos participem dos raios da sagrada luz. Mãos, portanto, à obra, meus muito queridos filhos! Que nesta reunião solene todos os vossos corações aspirem a esse grandioso objetivo de preparar para as gerações porvindouras um mundo onde já não seja vã a palavra felicidade.

François-Nicolas-Madeleine, cardeal Morlot. (Paris, 1863.) 
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, Capítulo V - Bem-aventurados os Aflitos - Instruções dos Espíritos 

terça-feira, 17 de maio de 2016

REENCARNAÇÃO E CIÊNCIA



Presente nas mais diversas culturas, a reencarnação desafia o tempo, permanecendo viva na mente e nas crenças do ser humano. 

Desde a mais remota antiguidade até os nossos dias, ela vem sendo a forma mais completa de explicar os diversos e complexos fenômenos da experiência humana. Sua credibilidade vem de evidências experimentais e de provas sob rigoroso controle científico. 

A reencarnação é hoje um fato cientificamente provado, em que pese pouco explorado. Com fortes evidências sob o ponto de vista da ciência, já alcançou a atenção dos institutos de pesquisas das universidades. Não é difícil demonstrar, através de provas científicas, que a Reencarnação é uma lei universal e que a evolução humana se processa através dela. 

Reencarnar é retornar a um novo corpo, através de um novo nascimento, via fecundação biológica, da personalidade individualizada do ser humano. Retornar significa voltar com a mesma individualidade anterior. Apesar de mudar-se de nome, de corpo e, às vezes, de cultura, não se passa a ser outro espírito. A personalidade anterior se modificará a partir do nascimento, com um novo ambiente, porém o espírito continuará o mesmo, acrescendo novos conhecimentos. 

Encontramos como sinônimos de reencarnação o termo palingênese, que significa “nascer de novo” e o termo metempsicose, de origem grega, cujo significado aproxima-se do de reencarnação, porém, ao contrário do conceito espírita, o qual só admite o retorno a um corpo humano, também aceita a possibilidade de se regredir às formas animais. 

Os mais antigos livros onde encontramos a doutrina da reencarnação são os Vedas, de cuja matriz surgiram grande parte das religiões e sistemas filosóficos da Índia, os quais contêm hinos sagrados, cuja origem remonta muitos anos antes de Cristo. No Egito, as dinastias mais antigas, acreditavam na preexistência da alma, antes do seu nascimento, assim como na sua pós-existência depois da morte e nos muitos nascimentos da alma neste e em outros mundos. 

Religiões significativas da Pérsia, principalmente o Zoroastrismo, na sua forma genérica popular e dinâmica, seguiam doutrinas contendo a reencarnação, com a concepção de uma espécie de justiça cósmica, na qual as almas recebiam os seus prêmios ou castigos merecidos nas vidas futuras. Há registros de que da Pérsia, a crença da reencarnação foi levada à Grécia. 

A religião ortodoxa Islâmica não aceita nenhuma doutrina de reencarnação. Apesar disso, algumas escolas esotéricas dentro do Islamismo – tais como os Sufis e os Drusos, defendem fortemente a reencarnação. Alguns místicos islâmicos e poetas sufis como Rumi, Hafiz e outros, defendiam abertamente a reencarnação. 

De acordo com Flavius Josephus, o 1º historiador judeu do século I d. C., as três escolas antigas de pensamento e prática da religião judaica – os Saduceus, os Fariseus e os Essênios – diferenciavam-se acerca do destino da alma após a morte do corpo. Os Saduceus defendiam que a alma morre juntamente com o corpo. Os Fariseus mantiveram a imortalidade da alma, o renascimento das almas das pessoas boas noutros corpos e o castigo eterno das almas dos mais fracos. Os Essênios aceitavam a imortalidade e rejeitavam a reencarnação. O Velho Testamento contém passagens (Provérbios 8:22-31; Jeremias 1:4-5) nas quais o autor professa que teria existido anteriormente ao nascimento físico, com destaque para Malachias (4:2-6) que previu o retorno de Elias à Terra. 

No Alasca, entre os índios da tribo Tlingits, é crença geral que os mesmos sinais e cicatrizes podem reaparecer no corpo do renascido. Fato já comprovado cientificamente nas pesquisas de Ian Stevenson. Entre os Esquimós, há inúmeros casos de pessoas que se recordam de suas vidas pregressas. Diversas tribos americanas, dentre elas os Peles-Vermelhas, aceitam a reencarnação. Os Winnibagos crêem na reencarnação. Crença idêntica existe entre os índios Chippeway. Eles estão certos de que, em seus sonhos, podem reviver acontecimentos de encarnações passadas. 

A principal corrente do Cristianismo ortodoxo, o Catolicismo, nunca acolheu abertamente a doutrina da reencarnação nas suas crenças, porém pensadores importantes e seitas dinâmicas abraçaram uma ou outra versão da doutrina dos renascimentos terrestres. Um Conselho “ecumênico” importante (o 2º de Constantinopla, em 553 d. C.), de acordo com a crença comum, anatematizou, isto é, condenou todas as concepções da preexistência da alma e do renascimento, que faziam parte das teses de Orígenes (185 – 254 d. C.), excomungado em 232 d. C. por adotar a reencarnação. Um dos expoentes máximos da Igreja, Clemente de Alexandria (preceptor de Orígenes), aceitava a reencarnação e, ainda mais, afirmava que São Paulo também professava tal crença. 

Nos Diálogos de Platão - Fedon, Banquete e República, a reencarnação é apresentada como um dos ensinos de Sócrates. Em República, livro X, há o episódio de Er, filho de Armênio, originário da Panfília, que, após 12 dias de morte aparente, recupera-se e conta o que viu no mundo dos mortos. Relatou como se dá o retorno das almas para o renascimento. Anteriormente a Sócrates, pelo menos Pitágoras, Heráclito e Empédocles expressaram explicitamente idéias de reencarnação. Em Fedon, Platão atribuiu a Sócrates a doutrina da existência da alma antes de entrar neste mundo, assim como a sua sobrevivência.

A despeito da Filosofia e em pleno século XX, as investigações sobre o tema tomaram novo impulso. Na França, com Albert Des Rochas, na Índia com Hamendras Nat Banerjee, nos Estados Unidos, com Ian Stevenson. Cada um à sua época, desenvolvendo diferentes métodos de pesquisas, a partir de fatos concretos, trouxe nova luz a respeito da reencarnação, principalmente introduzindo-a como objeto de investigação científica. 

As pesquisas em torno da reencarnação virificam-se em vários campos; dentre eles, tem-se a Regressão de Memória e as Lembranças Espontâneas na Infância. Entre os estudiosos de regressão de memória destacam-se Albert Des Rochas, Edith Fiore, Denis Kelsey, Morris Netherton, Helen Wambach e Hermínio Miranda. Todos eles desenvolveram experiências em torno da regressão de memória com resultados surpreendentes, que extrapolaram os espaços científicos, penetrando nos consultórios de psicólogos como técnica terapêutica. 

Nas pesquisas de Lembranças Espontâneas na Infância, destacam-se os trabalhos de Ian Stevenson, H. N. Banerjee e Hernani G. Andrade. São pesquisas de grande credibilidade pelas características da espontaneidade e da insuspeição em se tratando de crianças. Há milhares de casos catalogados com a confirmação das informações sobre vidas passadas que não se resumem a vagas memórias, mas, sim, a dados precisos, com nomes, datas, locais e detalhes importantes. Em tais pesquisas verificou-se que, o intervalo de tempo entre uma e outra encarnação pode variar de dias a séculos. 

A necessidade de se estabelecer um princípio diretor justo e equânime para justificar a sociedade e suas complexas relações, coloca a reencarnação como o mecanismo capaz de favorecer a justiça divina e de possibilitar o crescimento espiritual da sociedade. Nada poderia justificar as contingências do existir com a precisão com que a reencarnação o faz. As dificuldades e conflitos humanos passam pela necessidade de uma justificativa filosófica e até mesmo do ponto de vista do equilíbrio energético. 

A reencarnação é a chave para desvendar os mistérios provocados pelo vazio do conhecimento parcial que o ser humano tem sobre si mesmo. Nem sempre a justiça, ou seja, o processo educativo para resolver problemas de vidas passadas, o qual se torna possível pela via da reencarnação, dá-se imediatamente na encarnação seguinte do espírito. Os mecanismos educativos podem ocorrer na mesma existência, sem a necessidade da reencarnação, como também podem acontecer após várias encarnações. 

O tempo que leva para que o processo educativo se instale, dependerá da ocorrência de fatores que propiciem o aprendizado do espírito. Às vezes, há a necessidade de se reunir pessoas várias num processo único, o que poderá levar décadas, séculos ou milênios. Deve-se salientar que ninguém, nenhum ser humano, estará isento do processo de educação. A reencarnação é mecanismo obrigatório no nível de evolução em que se encontra a humanidade terrestre. Ninguém está isento dela. Não há privilégios nem privilegiados. 

Reencarnar sem a lembrança do passado é o mecanismo que possibilita a convivência de contrários e daqueles que elevaram a paixão ao seu grau máximo. Sem o esquecimento das experiências anteriores não seria proveitosa a reencarnação. Reencarna-se para aprender, para educar-se. Para crescer a partir de novos elementos, de uma nova oportunidade, num novo ambiente, onde se possa construir ou reconstruir seu próprio crescimento. Tal esquecimento não significa a perda do conhecimento adquirido nas existências anteriores. O espírito não involui. Não se perde o que já se sabe. Esquece-se temporariamente o que não é relevante para o crescimento do espírito. 

As qualidades, os defeitos, as emoções, os amores, os ódios, ficam latentes e participam, de forma subjacente, nas relações do reencarnado, atuando de forma inconsciente. Seus desejos e escolhas são influenciados pelas experiências das encarnações anteriores. Muitos espíritos que estiveram juntos em encarnações anteriores se separam para se reencontrarem mais adiante. Alguns desafetos quando se vêem se “lembram” do passado. Pode ocorrer que a inimizade retorne. Como também os afetos quando se reencontram refazem a mesma ligação que tiveram no passado. O espírito “enxerga” o outro espírito, independente do corpo que têm e do grau de parentesco que possuem. 

Alguns espíritos não reencarnam na mesma época que seus afetos e ficam a velar por eles para que obtenham sucesso naquela encarnação. Ao libertar-se do corpo, seja durante o sono ou com a morte, o espírito vai aos poucos retomando sua memória integral. O retorno através da reencarnação se dá para o aprimoramento do espírito. É um processo educativo, e não punitivo. Encarado dessa forma, não há um número definido de encarnações para um espírito. Os processos não se dão de forma linear, isto é, não se passa pelo que se causou a outrem na mesma proporção. 

As circunstâncias a que um espírito está sujeito numa encarnação expiatória são sempre atenuadas pela Misericórdia Divina. Não se devem interpretar as doenças e outros sofrimentos senão como processos educativos. Errou-se no passado porque não se sabia como agir corretamente. Retorna-se para aprender até não mais se precisar reencarnar. Os equívocos humanos são conseqüência de sua ignorância. As idéias inatas, as simpatias e antipatias gratuitas, os gênios, de alguma forma parecem denunciar uma experiência anterior. 

O conhecimento não se produz de forma mágica. A reencarnação explica tais conhecimentos “inatos”, como oriundos de experiências em existências anteriores. Tudo então é aprendido pelo espírito através das vidas sucessivas. Coisa alguma lhe é “dada” de graça. Se no passado alguém adquiriu uma aptidão qualquer, ela hoje se manifestaria de alguma maneira como uma habilidade natural. Em muitos casos, os reencarnantes retornam com marcas de nascença. Trazem cicatrizes denunciadoras de experiências pregressas. Marcas que, quando não são creditadas a fatores genéticos, reproduzem-se de uma a outra existência por mecanismos psíquicos. As experiências que produziram as marcas foram de tal forma intensas que gravaram o corpo físico e o perispírito, denunciando a existência de uma matriz comum onde ficam “guardadas” as impressões do espírito. Essa matriz é o perispírito. Da mesma forma que essas marcas, surgem fobias, traumas, que podem se revelar logo na primeira infância. 

O conceito de reencarnação transcende ao aspecto da mera crença que está presente nas mais antigas culturas, tornando-se a base para a compreensão da razão de como vive o ser humano. A reencarnação não foi concebida como uma teoria para explicar a realidade, mas é uma realidade que explica e suscita muitas teorias. As relações humanas são influenciadas pelas emoções geradas nas experiências vividas no passado. Impulsos, estímulos, reações emotivas, atitudes diversas, não são apenas fruto da vontade e do meio ambiente, mas principalmente das experiências pregressas que estão gravadas no psiquismo, o qual não morre. 

A personalidade integral, a qual sobrevive à morte, já possui experiências diversas em matéria de profissões, de línguas aprendidas, de tipos de sexo, de classe social, de condição econômica, etc. O fato, por exemplo, de já ter experienciado viver nos dois tipos de sexo, concede ao ser humano habilidades para habitar nesse ou naquele corpo, sem que isso lhe cause qualquer problema quanto à sua relação com o sexo do corpo escolhido. Uma nova encarnação representa a construção de uma nova personalidade no novo meio em que se vai renascer. Os traumas e conflitos, dessa forma, aparecem tendo como uma das causas, talvez a principal, essa realidade interna, anterior, que contracena com a nova realidade externa. 

A solidão e as repetidas e constantes desilusões afetivas podem ser encaradas como resultantes de processos educativos, oriundos de experiências mal sucedidas no passado. O Espiritismo, com Allan Kardec, trouxe de volta a reencarnação como conhecimento fundamental de sua doutrina. Através do Espiritismo a reencarnação é analisada sob o ponto de vista sociológico e moral. A doutrina das vidas sucessivas é o alicerce da evolução. A frase “Nascer, morrer, renascer ainda, progredir sempre, tal é a lei” resume o significado da reencarnação para o Espiritismo.

Adenáuer Novaes no livro: Conhecendo o Espiritismo - Curso Básico 

CONCILIAÇÃO

 “Concilia-te - depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial de justiça, e te encerrem na prisão.” Jesus. (MATEUS, CAPÍTULO 5, VERSÍCULO 25.)

Muitas almas enobrecidas, após receberem a exortação desta passagem, sofrem intimamente por esbarrarem com a dureza do adversário de ontem, inacessível a qualquer conciliação. 

A advertência do Mestre, no entanto, é fundamentalmente consoladora para a consciência individual. 

Assevera a palavra do Senhor — “concilia-te”, o que equivale a dizer “faze de tua parte”. 

Corrige quanto for possível, relativamente aos erros do passado, movimenta-te no sentido de revelar a boa-vontade perseverante. Insiste na bondade e na compreensão. 

Se o adversário é ignorante, medita na época em que também desconhecias as obrigações primordiais e observa se não agiste com piores características; se é perverso, categoriza-o à conta de doente e dementado em vias de cura. 

Faze o bem que puderes, enquanto palmilhas os mesmos caminhos, porque se for o inimigo tão implacável que te busque entregar ao juiz, de qualquer modo, terás então igualmente provas e testemunhos a apresentar. Um julgamento legítimo inclui todas as peças e somente os espíritos francamente impenetráveis ao bem, sofrerão o rigor da extrema justiça. 

Trabalha, pois, quanto seja possível no capítulo da harmonização, mas se o adversário te desdenha os bons desejos, concilia-te com a própria consciência e espera confiante.

Emmanuel (Espírito) através de Francisco Cândido Xavier, 
no Livro "Pão Nosso". 

segunda-feira, 16 de maio de 2016

A LIÇÃO A NICODEMOS


Em face dos novos ensinamentos de Jesus, todos os fariseus do templo se tomavam de inexcedíveis cuidados, pelo seu extremado apego aos textos antigos. O Mestre, porém, nunca perdeu ensejo de esclarecer as situações mais difíceis com a luz da verdade que a sua palavra divina trazia ao pensamento do mundo. Grande número de doutores não conseguia ocultar o seu descontentamento, porque, não obstante suas atividades derrotistas, continuavam as ações generosas de Jesus beneficiando os aflitos e os sofredores. Discutiam-se os novos princípios, no grande templo de Jerusalém, nas suas praças públicas e nas sinagogas. Os mais humildes e pobres viam no Messias o emissário de Deus, cujas mãos repartiam em abundância os bens da paz e da consolação. As personalidades importantes temiam-no.

É que o profeta não se deixava seduzir pelas grandes promessas que lhe faziam com referência ao seu futuro material. Jamais temperava a sua palavra de verdade com as conveniências do comodismo da época. Apesar de magnânimo para com todas as faltas alheias, combatia o mal com tão intenso ardor, que para logo se fazia objeto de hostilidade para todas as intenções inconfessáveis. Mormente em Jerusalém que, com o seu cosmopolitismo, era um expressivo retrato do mundo, as idéias do Senhor acendiam as mais apaixonadas discussões. Eram populares que se entregavam à apologia franca da doutrina de Jesus, servos que o sentiam com todo o calor do coração reconhecido, sacerdotes que o combatiam abertamente, convencionalistas que não o toleravam, indivíduos abastados que se insurgiam contra os seus ensinos.  

Todavia, sem embargo das dissensões naturais que precedem o estabelecimento definitivo das idéias novas, alguns espíritos acompanhavam o Messias, tomados de vivo interesse pelos seus elevados princípios. Entre estes, figurava Nicodemos, fariseu notável pelo coração bem formado e pelos dotes da inteligência. Assim, uma noite, ao cabo de grandes preocupações e longos raciocínios, procurou a Jesus, em particular, seduzido pela magnanimidade de suas ações e pela grandeza de sua doutrina salvadora. O Messias estava acompanhado apenas de dois dos seus discípulos e recebeu a visita com a sua bondade costumeira.  

Após a saudação habitual e revelando as suas ânsias de conhecimento, depois de fundas meditações, Nicodemos dirigiu-se-lhe respeitoso:

- Mestre, bem sabemos que vindes de Deus, pois somente com a luz da assistência divina poderíeis realizar o que tendes efetuado, mostrando o sinal do céu em vossas mãos. Tenho empregado a minha existência em interpretar a lei, mas desejava receber a vossa palavra sobre os recursos de que deverei lançar mão para conhecer o Reino de Deus!  

O Mestre sorriu bondosamente e esclareceu:

- Primeiro que tudo, Nicodemos, não basta que tenhas vivido a interpretar a lei. Antes de raciocinar sobre as suas disposições, deverias ter-lhe sentido os textos.  Mas, em verdade devo dizer-te que ninguém conhecerá o Reino do Céu, sem nascer de novo. 

- Como pode um homem nascer de novo, sendo velho? - interrogou o fariseu, altamente surpreendido.

- Poderá, porventura, regressar ao ventre de sua mãe? 

O Messias fixou nele os olhos calmos, consciente da gravidade do assunto em foco, e acrescentou:

- Em verdade, reafirmo-te ser indispensável que o homem nasça e renasça, para conhecer plenamente a luz do reino!... 

- Entretanto, como pode isso ser? - perguntou Nicodemos, perturbado.

- És mestre em Israel e ignoras estas coisas? - inquiriu Jesus, como que surpreendido.

- É natural que cada um somente testifique daquilo que saiba; porém, precisamos considerar que tu ensinas. Apesar disso, não aceitas os nossos testemunhos. Se falando eu de coisas terrenas sentes dificuldades em compreendê-las com os teus raciocínios sobre a lei, como poderás aceitar as minhas afirmativas quando eu disser das coisas celestiais? Seria loucura destinar os alimentos apropriados a um velho para o organismo frágil de uma criança.  

Extremamente confundido, retirou-se o fariseu, ficando André e Tiago empenhados em obter do Messias o necessário esclarecimento, acerca daquela lição nova.


Jerusalém quase dormia sob o véu espesso da noite alta. Silêncio profundo se fizera sobre a cidade. Jesus, no entanto, e aqueles dois discípulos continuavam presos à conversação particular que haviam entabulado. Desejavam eles ardentemente penetrar o sentido oculto das palavras do Mestre. Como seria possível aquele renascimento? Não obstante os seus conhecimentos, também partilhavam da perplexidade que levara Nicodemos a se retirar fundamente surpreendido.

- Por que tamanha admiração, em face destas verdades? perguntou- lhes Jesus, bondosamente. - As árvores não renascem depois de podadas? Com respeito aos homens, o processo é diferente, mas o espírito de renovação é sempre o mesmo. O corpo é uma veste. O homem é seu dono. Toda roupagem material acaba rota, porém, o homem, que é filho de Deus, encontra sempre em seu amor os elementos necessários à mudança do vestuário. A morte do corpo é essa mudança indispensável, porque a alma caminhará sempre, através de outras experiências, até que consiga a imprescindível provisão de luz para a estrada definitiva no Reino de Deus, com toda a perfeição conquistada ao longo dos rudes caminhos.

André sentiu que uma nova compreensão lhe felicitava o espírito simples e perguntou: 

- Mestre, já que o corpo é como que à roupa material das almas, por que não somos todos iguais no mundo? Vejo belos jovens, junto de aleijados e paralíticos... 

- Acaso não tenho ensinado - disse Jesus - que tem de chorar todo aquele que se transforma em instrumento de escândalo? Cada alma conduz consigo mesma o inferno ou o céu que edificou no âmago da consciência. Seria justo conceder-se uma segunda veste mais perfeita e mais bela ao espírito rebelde que estragou a primeira? Que diríamos da sabedoria de Nosso Pai, se facultasse as possibilidades mais preciosas aos que as utilizaram na véspera para o roubo, o assassínio, a destruição? Os que abusaram da túnica da riqueza vestirão depois as dos fâmulos e escravos mais humildes, como as mãos que feriram podem vir a ser cortadas.

- Senhor, compreendo agora o mecanismo do resgate - murmurou Tiago, externando a alegria do seu entendimento. - Mas, observo que, desse modo, o mundo  precisará sempre do clima do escândalo e do sofrimento, desde que o devedor, para saldar seu débito, não poderá fazê-lo sem que outro lhe tome o lugar com a mesma dívida.  

O Mestre apreendeu a amplitude da objeção e esclareceu os discípulos, perguntando: 

- Dentro da lei de Moisés, como se verifica o processo da redenção?

Tiago meditou um instante e respondeu: 

- Também na lei está escrito que o homem pagará 'olho por olho, dente por dente". 

- Também tu, Tiago, estás procedendo como Nico- demos - replicou Jesus com generoso sorriso. - Como todos os homens, aliás, tens raciocinado, mas não tens sentido. Ainda não ponderaste, talvez, que o primeiro mandamento da lei é uma determinação de amor. Acima do "não adulterarás", do "não cobiçarás", está o "amar a Deus sobre todas as coisas, de todo o coração e de todo o entendimento". Como poderá alguém amar o Pai, aborrecendo-lhe a obra? Contudo, não estranho a exigüidade de visão espiritual com que examinaste o texto dos profetas. Todas as criaturas hão feito o mesmo. Investigando as revelações do céu com o egoísmo que lhes é próprio, organizaram a justiça como o edifício mais alto do idealismo humano. E, entretanto, coloco o amor acima da justiça do mundo e tenho ensinado que só ele cobre a multidão dos pecados. Se nos prendemos à lei de talião, somos obrigados a reconhecer que onde existe um assassino haverá, mais tarde, um homem que necessita ser assassinado; com a lei do amor, porém, compreendemos que o verdugo e a vítima são dois irmãos, filhos de um mesmo Pai. Basta que ambos sintam isso para que a fraternidade divina afaste os fantasmas do escândalo e do sofrimento. 


Ante as elucidações do Mestre, os dois discípulos estavam maravilhados. Aquela lição profunda esclarecia-os para sempre.  Tiago, então, aproximou-se e sugeriu a Jesus que proclamasse aquelas verdades novas na pregação do dia seguinte. O Mestre dirigiu-lhe um olhar de admiração e interrogou: 

- Será que não compreendeste? Pois, se um doutor da lei saiu daqui sem que eu lhe pudesse explicar toda a verdade, como queres que proceda de modo contrário, para com a compreensão simplista do espírito popular? Alguém constrói uma casa iniciando pelo teto o trabalho? Além disso, mandarei mais tarde o Consolador, a fim de esclarecer e dilatar os meus ensinos.

Eminentemente impressionados, André e Tiago calaram as derradeiras interrogações. Aquela palestra particular, entre o Senhor e os discípulos, permaneceria guardada na sombra leve da noite em Jerusalém; mas, a lição a Nicodemos estava dada. A lei da  reencarnação estava proclamada para sempre, no Evangelho do Reino.

Humberto de Campos (Espírito) através de Francisco Cândido Xavier 
no livro: Boa Nova, capítulo 14.  

SIGNIFICADO DO SER EXISTENCIAL


Objetivos da vida humana. Conflitos pessoais. Mitos, ilusão e realidade.  

Objetivos da vida humana  

Ninguém se encontraria reencarnado na Terra, não tivesse a existência física uma finalidade superior. O ser é produto de um largo processo de desenvolvimento dos infinitos valores que lhe dormem em latência, aguardando os meios propiciatórios à sua manifestação. Etapa a etapa, passo a passo, são realizados progressos que se fixam mediante os hábitos que se incorporam à individualidade, que resulta do somatório das vivências das multifárias reencarnações. Erros e acertos constituem recursos de desdobramento da consciência para os logros mais grandiosos da sua destinação, que é a de natureza cósmica, quando em perfeita sintonia com os planos e programas do Universo. Passando o princípio inteligente por diversos patamares do processo da evolução, fixa todas as experiências que lhe constituem patrimônio de crescimento mental e moral, atravessando os períodos mais difíceis e laboriosos da fase inicial, para alcançar os níveis de lucidez que o capacitam à compreensão e vivência dos Soberanos Códigos que regem o Cosmo. No período do pensamento primário tudo é feito mediante automatismos dos instintos, preservando os fenômenos inevitáveis da vida biológica, de modo a poder desenvolver as faculdades do discernimento sob a força do trabalho brutal, suavizando a própria faina com o esforço das conquistas operadas. Nesse ser primitivo as esperanças cantam as expectativas das glórias futuras. Ele olha o zimbório estrelado e não entende as lanternas mágicas rutilando ao longe, que lhe parece próximo. A saga da evolução é longa e, por vezes, dolorosa, deixando-lhe sulcos profundos, que noutras fases, sob estímulos inesperados dos sofrimentos, ressurgem como angústia ou violência, desespero ou amargura que não consegue explicar. Constituirlhe-ão arquétipos a exercerem grande influência no seu comportamento psicológico durante várias existências corporais, assinalando-lhe a marcha ascensional. Mesclam-se, em cada personalidade proveniente das reencarnações, dando surgimento a algumas personificações parasitárias e perturbadoras, que constituem o capítulo das personalidades múltiplas, em forma de comportamentos alienados. A sua evolução psicológica é, também, a mesma antropológica, especialmente nos passos primeiros. Avançando lenta e seguramente, aprendendo com as forças vivas do Universo, entesoura os recursos preciosos do conhecimento que lhe custou sacrifícios inumeráveis no longo curso das experiências, e agora se interroga a respeito da finalidade de todo esse curso de crescimento, descobrindo, por fim, que se encontra no limiar das realizações realmente plenificadoras e profundas, porque são as que significam libertação dos atavismos remanescentes, ampliando as aspirações na área das emoções mais nobres, portanto, menos afligentes, aquelas que não deixam as sequelas do cansaço, da amargura ou do desânimo. A criatura está fadada à felicidade, à conquista do Infinito, além das expressões do espaço. A dor que hoje a comprime é camartelo de estimulação para que saia da situação que propicia esse desagradável fator de perturbação. Compreendendo, por fim, a grandeza do amor, alça--se às cumeadas do trabalho pelo bem geral, empenhando--se na conquista de si mesma, do seu próximo, da vida em geral. Tudo quanto pulsa e vibra interessa-lhe, retira-a da pequenez e conduz à grandeza, trabalhando-lhe o íntimo que se expande e se harmoniza em um hino de confraternização com tudo e com todos, passando a fazer parte vibrante da vida. Esse significado existencial somente é descoberto quando atinge um grau de elevada percepção da realidade, que transcende o limite da forma física, transitória e experimental que, todavia, pode e deve ser cultivada com alegria e saúde integral. Não se creia, portanto, equivocadamente, que a finalidade primeira da conjuntura existencial seja viver bem, no sentido de acumular recursos, fruir comodidades, gozar sensações que se renovam e exaurem, alcançando o pódio da glória competitiva e todos esses equivalentes anelos do pensamento mágico, partindo para as aspirações fenomênicas e miraculosas dos privilégios e das regalias que não harmonizam o indivíduo com ele mesmo. Certamente, na pauta dos objetivos e do sentido existencial, constam as realizações sociais, econômicas, artísticas, culturais, religiosas, todas aquelas que fazem parte do mundo de relações interpessoais. Entretanto, não são exclusivas - metas finais das buscas e das lutas - desde que o ser transpõe os umbrais do túmulo e continua a viver, levando os seus programas de elevação gravados no imo profundo. Lutar sem fadigas exaustivas por conquistar-se, su-perando-se quanto possível, enfrentando os desafios com alegria e compreendendo que são os degraus de ascensão diante dos seus passos - eis como incorporará ao cotidiano os objetivos essenciais do seu aprimoramento físico, emocional e mental.               
    
Conflitos pessoais 

Nesse empreendimento de ascensão inevitável, o ser depara-se com as construções do seu passado nele insculpidas, que se exteriorizam amiúde, afligindo-o, limitando-o. Apresentam-se, essas fixações, como conflitos nas paisagens íntimas, ameaçando a sua realização, a alegria do trabalho, a harmonia da convivência com outras pessoas, transformando-se com facilidade em complexos perturbadores na área da emoção e do comportamento. Não se podem negar os fatores responsáveis por tais distúrbios, a começar pelos comportamentos da gestante, afetando o ser na vida intrauterina e culminando com a convivência em família, particularmente com pais dominadores, mães castradoras, neuróticas, que transferem as suas inseguranças e todos os outros conflitos para os filhos em formação, que se tornam fragilizados sob a alta carga de tensões que se veem obrigados a suportar. Por outro lado, as pressões sociais e econômicas, culturais e educacionais se transformam em gigantes apavorantes que passam a perseguir com insistência o educando, que absorve esses fantasmas e não os digere vindo a temê-los, a detestá-los e a conduzi-los por toda a existência, quando não recebeu conveniente tratamento. E certo que o Espírito renasce onde se lhe torna melhor para o processo da evolução. Como, todavia, ninguém vem à Terra para sofrer, senão para reparar, adquirir novas experiências, desenvolver aptidões, crescer interiormente, todos esses empecilhos que defronta fazem parte da sua proposta de educação, devendo equipar-se de valores e de discernimento para superá-los e, livre de toda constrição restritiva à sua liberdade, avançar com desembaraço na busca da sua afirmação plenificadora.      
    
Esta é, sobretudo, a função da Psicologia, ao penetrar o âmago do ser, para o desalgemar dos conflitos e heranças infelizes que lhe pesam na economia emocional. Sigmund Freud, o insigne Pai da Psicanálise, afirmava com razão muito pessoal que, na raiz de todo conflito neurótico, sempre existe um problema da libido. Não se pode descartar essa manifestação recalcada da libido, nos diversos comportamentos perturbadores que afetam a criatura humana. Isso porque, remanescente das suas experiências coevas, o ser renasce sob as injunções das condutas pelas quais transitou. No complexo de Edipo, por exemplo, detectamos uma herança reencarnacionista, tendo em vista que a mãe e o filho apaixonados de hoje foram marido e mulher de antes, em cujo relacionamento naufragaram desastradamente. No complexo de Eletra, deparamos uma vivência ancestral entre esposos ou amantes, e que as Soberanas Leis da Vida voltam a reunir em outra condição de afetividade, a fim de que sejam superados os vínculos anteriores de conduta sexual aflitiva. Esses amantes reencontrando-se e guardando no inconsciente, isto é, no Espírito, as reminiscências das atividades vividas sob tormentos, sentem os apelos de ontem reaparecerem vibrantes, e, não possuindo uma forte conduta moral, derrapam nas relações incestuosas, portanto infelizes. Mesmo nos complexos de inferioridade como nos de superioridade, ressurge o passado espiritual dominador, provocando os estados mórbidos, que levam ao desequilíbrio, a um passo da alienação mental. Não deixamos de ter em vista os fatores familiares, educacionais, sociais, que pesam na manifestação dessas perturbações, constituindo-se estímulos ao seu surgimento, piorando as tendências inquietadoras, sulcando a psique de forma poderosa.         
Nos quadros fóbicos, podemos encontrar Espíritos que conduzem, no íntimo, pavores que sobreviveram ao fenômeno biológico da reencarnação, cicatrizes do mundo espiritual inferior por onde transitaram, ou do despertamento na sepultura, em face das mortes aparentes, havendo desencarnado, em consequência, por falta de oxigênio, e que reexperimentam o tormento começa na claustrofobia. Outrossim, as recordações de cenas apavorantes de que participaram na multidão como vítimas ou desencadeadores, revivem-nas, inconscientemente, na agorafobia. Nas psicoses depressivas de vária manifestação, convém lembrar a presença da consciência de culpa, que preexiste ao corpo, portanto, à formação psicológica atual, produzindo mecanismos de fuga à ação dinâmica, sob o império, não poucas vezes, de enzimas neuroniais responsáveis pelo desajuste, como de fatores causais próximos e mesmo de obsessões espirituais, que se fazem atuantes no comércio mental com as criaturas humanas. Nesse capítulo, as dolorosas obsessões compulsivas têm suas raízes etiopatogênicas em graves condutas do Espírito nas existências pretéritas, assinaladas pelo descaso à dignidade humana, por desrespeito às leis constituídas... Quando a educação tiver como objetivo a construção do homem integral, os fatores de perturbação cederão lugar a outros tipos de estímulos, que são os edificadores da esperança, mantenedores das aspirações elevadas, no esforço para a superação das heranças doentias que cada um traz em si mesmo. 

Mitos, Ilusão e Realidade.  

Quando a criança não consegue amadurecer psicologicamente após o período de desenvolvimento do seu pensamento mágico, transfere aquelas construções para todas as fases da sua existência física, mantendo-se um indivíduo mendaz, que se refugia na criatividade imaginativa para liberar-se da responsabilidade dos atos imaturos. Essa conduta igualmente tem suas raízes profundas no arquétipo herdado do homem ancestral que viveu o processo de evolução pensante e deixou fixadas no inconsciente coletivo as marcas do trânsito por aquele período. Entretanto, a conduta de pais dominadores, que se sentem compensados pelo amor em carência, com a bajulação e a sujeição da prole, impõe que a fase mítica permaneça na estrutura da personalidade infantil, vendo, inclusive, nos filhos, mesmo adultos, os seres em formação que gostariam de continuar dirigindo. Trata-se de um conflito que se transfere de uma para outra geração, cada vez com resultados mais danosos. A falta de honestidade do adulto para autoanalisar-se e assumir a coragem de libertar-se de todos os impedimentos e amarras, que o detém nas fixações do passado, responde por condutas de tal natureza. A sua insegurança íntima produz o ditador que se cerca de leis injustas e atos arbitrários, de guardas ferozes e cuidados especiais, intimidando, destruindo e fazendo-se detestado como forma de sentir-se realizado. No ódio que lhe votam as vítimas, ele sente-se homenageado, porque temido, transferindo os seus medos em relação a tudo e todos para os demais em relação à sua pessoa. Os mitos, que remanescem do período infantil ou da falta de maturidade do adulto sob a ação de arquétipos específicos, trazem de volta à consideração os velhos conceitos em torno de deuses, semideuses, magos, fadas, fantasmas, crendices, como formas de aguardar proteção em deidades superiores, que chegarão magicamente para o salvar da maldade humana, da sociedade injusta, dos amigos infiéis...  

O pavor que lhe infundia o pai, ao alcançar a idade da razão, transfere-o para Deus, que reflete a imagem detestada do genitor físico, ou para os deuses mais terríveis que a imaginação concebeu nos períodos anteriores da cultura mais primitiva. A mãe arbitrária construirá no inconsciente a bruxa má, invejosa, que será vencida pela interferência da fada madrinha.  
Os conflitos da afetividade no lar inspirarão a confiança em um amor romântico, estilo medieval, que virá arrancar a vítima do encarceramento emocional em que sofre solidão e desconforto. O mestre mesquinho e perverso que mais se compraz em intimidar que em ensinar, estrutura, no psiquismo do educando, o invasor sem alma que lhe penetra o castelo existencial paia destruir, sob pretexto de amizade e ajuda. Soterrados, mas não mortos, os mitos estão nos alicerces do inconsciente, sempre prontos a tomarem de assalto a casa mental e o campo psicológico, levando o indivíduo a fugas ocasionais por intermédio dos sonhos acordados, da fertilidade imaginativa. A vida, para essas pessoas, passa a ter o seu lado de realidade e pleno, embora todas as suas aspirações estejam centradas no mundo do encantamento, certas de que, em um momento ou outro tudo se alterará e viverão felizes para sempre. Essa ilusão de que a vida física é o todo, a proposta essencial do existir, produz terríveis conflitos, porque, confiando com total dedicação no mundo material, as próprias injunções do desenvolvimento do ser apresentam-lhe a fragilidade estrutural em que se apoia, e isso produz-lhe desencanto, dor e desfalecimento nos ideais. A crença firmada na ilusão de que tudo é duradouro, senão eterno, no mundo terrestre, propicia o choque com a realidade dos fenômenos das transformações incessantes, que ocorrem por força da própria transitoriedade da matéria e de tudo quanto ela se reveste. O ser profundo é resistente às situações da mudança das ocorrências humanas ou fenomênicas do habitai, construído de energia pensante, que independe dos fatores transitórios do corpo somático, a ele preexistente e sobrevivente, portanto uma realidade que vence tempo e espaço, avançando sem cessar. 

Os fatos que o demonstram resistem às teses que se lhe opõem e apresentam os resultados filosóficos e psicológicos dos seus conteúdos de segurança. Transitar da ilusão para a realidade é imperativo para a aquisição da harmonia pessoal, da felicidade íntima. Buscar o apoio do conhecimento, a fim de discernir o que é ilusório e o que é verdadeiro, o que tem estrutura resistente ao tempo e às transformações culturais e aquilo que apenas engoda, oferece ensejo de amadurecimento psicológico, de realização interior. Com essa determinação, os apegos perturbadores, os ciúmes injustificáveis, as angústias da ansiedade sem sentido, as decepções infantis, ante os acontecimentos normais do desenvolvimento dos fenômenos, cedem lugar à libertação de pessoas, coisas e prazeres, que, embora sejam motivação para viver, não constituem a única razão da vida. São realidades inalienáveis as ocorrências do nascimento e da morte, da velhice e das doenças, porque fazem parte dos mecanismos da vida física. Tornar mais aprazíveis os dias vividos no corpo, eliminar os fatores de perturbação que tornam a existência insuportável, às vezes, fundamentar o conhecimento por meio das experiências são opções ao alcance de toda pessoa lúcida, que pode conseguir o desejado através do esforço empregado para tanto. Prolongar a existência física é factível, não, porém, indefinidamente, por motivos óbvios. Sendo inevitável a morte própria ou dos seres amados, enfrentá-la com serenidade é um sentido de vida normal, que não deve surpreender, nem magoar. Aceitar os indivíduos como são, eliminando a hipótese de que são perfeitos, deuses ou semideuses do panteão da ilusão, funciona como termômetro para o equilíbrio da emoção em torno da realidade da vida humana. Nem paixão, nem abandono diante da vida, mas consciência de como bem viver no relativo tempo terrestre.

Joanna de Ângelis (Espírito) através de Divaldo Pereira Franco, 
no livro Vida: Desafios e Soluções.

domingo, 15 de maio de 2016

A FILOSOFIA ESPÍRITA DA FÉ RACIOCINADA


Por Luis Signates (GO).

As relações entre fé e razão desde o princípio fazem parte do debate filosófico espírita, com a criação por Allan Kardec do conceito de fé raciocinada. De um ponto de vista conceitual, estabelece-se uma contradição aparentemente insuperável, porquanto a fé se funda na convicção e a razão, na dúvida; resulta, então, que ambos se contradizem. Ora, como crer e duvidar são práticas antagônicas por definição, o conceito de "fé raciocinada", seria por isso um evidente contra-senso.

Em Kardec, esse conceito é apresentado dentro de um quadro argumentativo construído para negar uma outra noção, atribuída pelo professor lionês às religiões dogmáticas: a "fé cega". Nesse sentido, a fé raciocinada seria algo próximo de "fé fundamentada", isto é, o adjetivo referente ao raciocínio daria ao sujeito o significado de um estado, e não de um processo. Ou seja, a fé raciocinada não seria propriamente uma "fé que raciocina", e sim, uma fé que já raciocinou antes, para se constituir. Tal interpretação consegue parcialmente satisfazer o quadro lógico de separação entre fé e razão: haveria primeiro o movimento de raciocínio e, somente depois, a fé se constituiria.

Esse ponto de vista, entretanto, não é satisfatório, sob o prisma kardequiano. Ainda nas menções que faz sobre a questão da fé, o codificador publicou em "O Evangelho Segundo o Espiritismo" um axioma que se tornou famoso nos meios doutrinários espíritas: "Fé inabalável só é a que pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da Humanidade". Nessa proposição, Allan Kardec nos remete a uma percepção histórica, processual, do fenômeno da crença, delimitando, com o rigor que lhe era próprio, a característica especial e profundamente inovadora da fé espírita.

Nesse contexto, a fé raciocinada – qualidade que a tornaria inabalável – seria não apenas aquela que se constituísse por um movimento de decisão racional, mas, também, a que se mantivesse em regime de racionalidade contínua, inclusa essa exigência no exercício da própria fé. A conciliação necessária, nesse caso, entre os conceitos de fé e razão, seria feita pela mudança de um raciocínio lógico para um raciocínio dialético: os contrários, ao invés de se excluírem, se complementam, se conjugam, na explicação da realidade.

Dentro desse modo de pensar, a fé espírita forma um par dialético inseparável com a razão espírita. Tal ideia significa que a crença espírita é basicamente uma fé que admite dúvida e com ela convive, durante todo o tempo. Trata-se, pois, de uma fé aberta, dialogal, disposta a modificar as próprias opiniões ou o objeto de sua manifestação como crença, desde que satisfeitas as condições do livre exercício da razão. Em contrapartida, a razão espírita constitui uma dúvida que se baseia na fé, capaz de fazer emergir as desconfianças naturais da racionalidade sem uma pretensão cética ou cientificista, e que, sobretudo, está disposta a admitir a crença e a confiança naqueles conteúdos sobre os quais a razão ainda não assumiu uma postura de conhecimento e verificação. Tal composição resulta no que Herculano Pires denominou, muito apropriadamente, "fideísmo crítico".

O uso da razão é a admissão da dúvida, a qual, no Espiritismo, se funda no princípio filosófico da imperfeição espiritual (temos preferido denominá-la incompletude, para retirar o sentido pejorativo do termo "imperfeição", como algo "errado, estragado, com defeito"), o que faz da jornada espiritual a contínua e necessária possibilidade da mudança. Por esta via, o Espiritismo funda um novo iluminismo, cuja formulação acredita na racionalidade como fundamento da fé humana e, por tal razão, confia no aperfeiçoamento das possibilidades da razão como geratriz do aprimoramento da fé.

Feitas tais considerações, de ordem filosófica, convém refletir pragmaticamente. Nem todos os espíritas na atualidade compreendem o que significa essa dimensão do conceito de fé raciocinada. Não raro, imaginam que raciocinar seja o mesmo que racionalizar, isto é, referir-se à razão como pretexto para justificar o dogma, o que transforma o argumento racional em argumento ideológico (no sentido negativo, como falsa concepção da realidade, apoiada somente em critérios de identidade religiosa), atitude que de modo algum pode ser justificada na proposta de Kardec. Fé raciocinada, portanto, não é o mesmo que fé racionalizada (até porque todas as formas de fé podem ser enquadradas neste último tipo).

Dentre as diversas concepções de racionalidade válidas em filosofia, acreditamos que a noção de "razão comunicativa" ou "razão consensual", do filósofo alemão Jürgen Habermas, é a que melhor se adequa ao conceito de fé raciocinada, em Kardec. Para aquele pensador, há racionalidade sempre que houver diálogo onde se instaurem consensos entre os interlocutores, sendo que a verificação prática do consenso seria a própria demonstração de que houve racionalidade. Em outras palavras: razão é o diálogo que dá certo.

Em Kardec, a fé raciocinada é a fé que permanece em constante contato com a razão, isto é, busca sempre um saber mais amplo, argumenta e se questiona. Para isso, a fé espírita há de ser permanentemente reconstruída no diálogo com os diversos saberes, especialmente na interação entre o saber humano, de vertente científica, filosófica ou experiencial, e o saber espiritual, originado da interlocução mediúnica. Eis, portanto, sob formulação espírita, a razão comunicativa, um movimento de construção da crença erigido sobre o diálogo e, por isso, capaz de "enfrentar a razão, face a face, em qualquer época da Humanidade".

Os espíritas, por isso, não podem abandonar em tempo algum a possibilidade do diálogo, não apenas com os espíritos, a partir dos quais o conhecimento assume a forma de "revelação", em definição kardequiana, mas também com os variados saberes humanos, especialmente o filosófico e o científico. A fé espírita há de ser uma fé em constante atualização, uma fé sempre renovada, sempre reconstruída. Ou recairá lamentavelmente num novo tipo de fé cega: a que se contenta em apenas fingir que vê.

ESPIRITUALIDADE E POLÍTICA. POR QUE TEMOS QUE SER MAIS ESPIRITUAIS.


Publicado originalmente em REVISTA OÁSIS.

Não parecemos estar equipados para explorar toda a profundidade e amplitude da experiência humana.

Por Jonathan Rowson. Fonte: Revista Prospect

Hoje, o sentimento popular predominante é de irrefletida confusão espiritual. Os noticiários modernos estão inundados de referências religiosas, mas o comentário sobre perspectivas, experiências e práticas espirituais mais amplas, é no geral relativamente subdesenvolvido.

O Papa, por exemplo, quando faz seus apelos para uma ação mais efetiva com relação às alterações climáticas, consegue atingir bem mais além dos fiéis católicos. Mas onde está a linguagem do medo, culpa, esperança e ameaça existencial que está subjacente à preocupação climática? Nossos bispos apelam para uma maior imaginação política para conectar nossa vida interior com aquela exterior. Mas além das esperanças oblíquas de pensadores como Russell Brand com vistas a uma revolução no âmbito da alma, onde estão as formas e modelos de vida sugeridos que vão além da doutrina religiosa? E nós, com razão, perguntamos em que sentido o Estado Islâmico é islâmico, já que ele não parece Estado e nem islâmico. Mas podemos dar uma resposta adequada a seus atos bárbaros de violência sem uma discussão mais aberta e honesta sobre os aspectos mais sombrios da nossa própria natureza?

Fora das grandes instituições religiosas, que já não falam mais em nome da maioria das pessoas, nós não parecemos estar equipados para explorar toda a profundidade e amplitude da experiência humana. Estamos espiritualmente confusos, no sentido de que temos de lutar muito para pensar e conseguir falar coerentemente de coisas que são profundamente mais importantes para nós como, por exemplo, quem e o que amamos, o que nos dá orgulho ou sofrimento, e o fato de que fatalmente iremos morrer. Achar que tais questões fundamentais relativas à vida são privadas, pessoais e localizadas, é precisamente o problema. Insistir nas motivações e nos valores expressos através de tais experiências e reflexões pode ser central em qualquer tentativa séria de re-orientar a sociedade. O ator Michael Sheen não está sozinho ao considerar que o alarido político que agora nos é oferecido como sendo política grande e verdadeira, é, na verdade “um pântano gelatinoso e monótono de neutralidade”.

Formas para a revitalizacão da espiritualidade

A RSA 21st Century Enlightment (www.thersa.org), uma organização que geralmente se concentra em tópicos mais convencionais de política pública, como empreendimento, educação e crescimento das cidades, reconheceu este desafio em um novo relatório chamado Spiritualise. O relatório foca nas formas de revitalizar nossa compreensão e apreciação da espiritualidade para enriquecer o debate político do século 21, mas resiste a apelos para a espiritualidade ser vista como um novo martelo em uma velha caixa de ferramentas, para acertar pregos estabelecidos na cabeça. Aqueles que são demasiadamente apressados para perguntar o que é exatamente a espiritualidade , e como exatamente ela vai ajudar a criar um novo conceito político e novas agendas políticas estão, de fato, perpetuando o problema e perdendo o foco.

A contínua negligência do espiritual na sociedade moderna não é benigna, pois ela serve para reprimir e estigmatizar recursos intelectuais que não são redutíveis a objetivos claros, definições precisas e medidas repetíveis. Reavaliar o espiritual significa precisamente desafiar a hegemonia do pensamento tecnocrático, e fazer o debate público menos instrumental em sua natureza. Uma vez que você percebe que questões de significado, o sagrado e a transcendência não são domínio exclusivo da religião, torna-se óbvio que eles devem representar uma parte maior da vida política.

Em seu texto clássico, Auto-Despertado (Self Awakened), o conceituado filósofo político Roberto Unger coloca as coisas dessa forma: "Se o espírito é um nome para as faculdades resistentes e transcendentes do agente, podemos espiritualizar a sociedade. Podemos diminuir a distância entre o que somos e o que nós encontramos fora de nós mesmos”.

A necessidade de diminuir a distância entre o que somos e o que nós encontramos fora de nós mesmos é um dos grandes desafios do momento atual que mostra porque vale a pena lutar pelo espiritual. Tanto o termo “espiritual” como sendo algo que possui profunda relevância política, quanto a metáfora de lutar, de reconhecer o espiritual, não são questões fáceis ou escapistas, mas sim pontos críticos importantes sobre os quais o trabalho humano deve ser aplicado.

De acordo com uma sondagem de 2013 pela organização Theos, 59 por cento dos adultos britânicos acreditam em "algum tipo de ser espiritual ou essência" e quase um quarto dos ateus "acredita em uma alma humana", mas tais valores apenas aumentam a sensação de confusão espiritual. É como se as linguagens disponíveis tivessem se tornado muito saturadas para transmitir um significado. Em parte, isso acontece porque as ferramentas de pesquisa construídas para medir e interessar a mídia são demasiado toscas para capturar as complexidades da experiência humana.

Um problema mais profundo é que a nossa noção de senso comum sobre crença como conhecimento diluído ou incompleto não capta o sentido mais rico da crença como identificação de grupo, práticas compartilhadas e afinidade por convivência. Crenças sobre valores e significados e a realidade verdadeira não são formadas ou mantidas da mesma forma como as nossas crenças sobre fatos básicos; em vez disso elas surgem de forma sutil e inconsciente a partir da osmose social e cultural.

A espiritualidade permanece ambígua

Aqueles que dizem que espiritualidade nada tem a ver com "crença" estão, portanto, apenas meio corretos, mas a espiritualidade permanece ambígua inclusive por uma boa razão. Não é um conceito unitário, mas uma placa de sinalização para uma gama de critérios; nossa busca por sentido, nosso senso do sagrado, o valor da compaixão, a experiência da transcendência, a fome por transformação.

Tais critérios são essencialmente humanos ao invés de meramente religiosos, e são buscados tanto no mundo urbanizado hiper-conectado e em constante movimento como em uma tranquila igreja de aldeia. Por exemplo, quando você considera a onipresença das "armas de distração em massa", incluindo anúncios e smartphones, sendo treinados para se reconectar com a respiração através de profunda meditação não é apenas sobre a paz individual, mas também uma guerra mais ampla para o controle da nossa atenção. Beber álcool é superficialmente sobre relaxar, mas é mais fundamentalmente sobre escapar do eu, e sua incessante vibração interna. Torcer para equipes de futebol é superficialmente sobre entretenimento, mas atende a uma profunda necessidade de solidariedade e de ritual. E quais são esses momentos que nós, em silêncio,  ansiamos viver, se não pedaços da transcendência?

A necessidade espiritual e de expressão é perene, mas se manifesta de acordo com o contexto histórico e cultural, e esse contexto é curiosamente cobrado no momento presente. Como investigador principal deste projeto de dois anos da RSA, notei que a simples menção da palavra "Espiritualidade" provoca reações curiosas que podem ser lidas nas expressões faciais das pessoas, dividindo as pessoas em três grupos principais:

1. "Espirituais vira casaca (Spiritual Swingers)": São animados, arregalam os olhos, mas às vezes eles olham para você como quem quer e precisa de alguma ajuda. Gostam de meditação e massagens, de misticismo em ashrams e  mosteiros, adoram o luar e as técnicas de meditação de atenção plena. Estão dispostos a experimentar qualquer coisa, contanto que seja "espiritual", e de preferência não muito "religiosa".

2. "Diplomatas religiosos": Olham para você calorosamente mas um tanto intrigados, porque eles não conseguem descobrir qual é a sua verdadeira motivação. Será você, no fundo, um deles? Ou você secretamente deseja substituir os métodos estabelecidos que eles já conhecem por algo sedicioso e não plenamente confiável?

3. "Assassinos intelectuais": Apenas olham para você o mais educadamente possível. Seu olhar de desconforto chega a beira do desdém e são os mais rápidos a pedir uma definição do que é o espiritual, mas geralmente com o expresso propósito de desprezá-lo.

O desafio, no momento presente, é revitalizar o espiritual de uma forma sensata e inclusiva; madura o suficiente para manter diplomatas religiosos a bordo, sofisticada o suficiente para manter assassinos intelectuais apaziguados, e politicamente relevante para os desafios modernos relacionados a problemas "maiores do que eu" como o terrorismo ou as alterações climáticas. No movimento Spiritualize nós nos concentramos no amor; na nossa necessidade de pertencer a algo que vá além de nós mesmos; na morte; na nossa intermitente consciência de simplesmente estarmos vivos; no Self (o eu impessoal ou superior); no nosso caminho de individuação espiritual através da auto-integração e da autotranscendência; na alma; no nosso  senso de integridade e transcendência, experimentado através do belo e do sublime.

O triste é que, na concepção generalizada que temos hoje de religião, temos terceirizado esses recursos sociais, culturais e psicológicos para uma agenda cripto-consumista elaborada em projetos de identidade casuais destinados exclusivamente aos "spiritual swingers". O que poucos percebem, no entanto, é que não foi esse tipo de espiritualidade comercializada que roubou a religião, mas que, enquanto a religião estava olhando para o outro lado, o consumismo roubou a espiritualidade.

Através de secularização gradual ocorrida nos séculos 18, 19 e início do 20, a sociedade removeu a religião da nossa economia política para tentar limitar o abuso de poder fora de controle democrático. Com razão, mas este processo causou alguns danos colaterais para a linguagem do valor intrínseco. Uma implicação, destacada pelo professor da Harvard Michael Sandel, é que lenta mas seguramente uma sociedade com mercado se tornou uma sociedade de mercado. Reconceber o espiritual tem a ver com tentar lidar com essa perda corrosiva da perspectiva, além de fornecer perspectivas mais profundas sobre como estimular a convicção necessária para lidar com problemas como as alterações climáticas e a desigualdade da riqueza global que estão claramente fora do alcance de qualquer cálculo tecnocrático.

Um exemplo deste tipo de linguagem política ficou evidente no BBC Question Tiime logo após o referendo da independência da Escócia. Uma das principais defensoras do Sim, a jornalista Lesley Riddoch foi questionada se era hora de aceitar o resultado final e estabelecer um limite sob a questão constitucional. Ela reconheceu o resultado, mas o qualificou com uma observação que foi muito mais profunda: "O nível de ativismo, comprometimento, imaginação, amizade, camaradagem... Foi o melhor ano da minha vida; do ponto de vista da humanidade e otimismo que foi gerado. Se você foi parte disso... É tão precioso, é tão incomum, que você realmente sente que você não quer ver isso ir embora”, disse Riddoch.

Em uma sociedade que tem sido chamado de cristã, pós cristã, multi-fé, espiritualmente pluralista, secular, pós-secular e pós-religiosa, precisamos de uma discussão pública muito melhor sobre a espiritualidade que partilhamos. É hora de reorientar essa discussão longe daquilo que nunca poderemos realmente saber sobre o nosso lugar no universo, em direção ao que podemos saber, e vivenciar, sobre nós mesmos.


quinta-feira, 12 de maio de 2016

O PT PODERÁ SE REINVENTAR - POR FREI BETTO

 
Ver Dilma ser enxotada do Planalto me traz profunda indignação. Éramos vizinhos na década de 1950, na rua Major Lopes, em Belo Horizonte. Fomos vizinhos de cela no Presídio Tiradentes, em São Paulo, na década de 1970. E, pela terceira vez, vizinhos na Esplanada dos Ministérios, ela ministra e eu assessor especial de Lula, em 2003-2004.

Minha indignação tem a ver com a mesquinhez da política institucional brasileira. Sem convencer a mim e a muitos que Dilma cometeu algum crime, o rolo compressor da oposição ressentida e do oportunismo ontofisiológico de caciques do PMDB, abriu a machadadas um atalho na ordem constitucional para fazer coincidir oposição e deposição. O precedente está criado! Daqui pra frente a tribuna parlamentar cede lugar ao tribunal de Justiça. A judicialização da política brasileira faz com que a soberania popular, através do voto nas urnas, passe a ter insignificância.

Os três primeiros governos do PT representam o que há de melhor em nossa combalida história republicana. Saíram da miséria 45 milhões de brasileiros. Os programas sociais, do Bolsa Família ao Mais Médicos, estenderam à parcela mais pobre da nação uma rede de proteção social. O acesso à universidade foi deselitizado. O FMI deixou de se meter em nossas contas. A América Latina ganhou maior unidade, e Cuba foi retirada do limbo.

Lástima que o PT se deixou picar pela mosca azul. Não ousou implementar reformas de estruturas, como a política, a tributária e a agrária. Permitiu que o Fome Zero, de caráter emancipatório, fosse substituído pelo Bolsa Família, compensatório. Erradicou, em fins de 2004, Comitês Gestores em mais de 2 mil municípios, e entregou às mãos dos prefeitos o cadastro do Bolsa Família.

Como se a retórica fosse suficiente para encobrir gritantes desigualdades, o PT tentou, em vão, ser o pai dos pobres e a mãe dos ricos. Para renovar o Congresso, não confiou no potencial político de líderes de movimentos sociais. Preferiu alianças promíscuas cujos vírus oportunistas acabaram por contaminar alguns de seus dirigentes. Em 13 anos de governo, não se empenhou na alfabetização política da nação nem na democratização da mídia, sequer no modo de distribuir verbas publicitárias para veículos de comunicação.

Graças ao crédito facilitado, ao controle da inflação e ao aumento real (e anual) do salário mínimo acima da inflação, a população teve mais acesso a bens pessoais. Dentro do barraco de favela, toda a linha branca favorecida pela desoneração tributária e, ainda, computador, celular e, quem sabe, no pé do morro, o carro comprado a prestações.

Porém, lá está o barraco ocupado pela família sem acesso à moradia, segurança, saúde, educação e ao transporte coletivo de qualidade. A prioridade deveria ter sido o acesso aos bens sociais. Criou-se, portanto, uma nação de consumistas, não de cidadãos, nação feita de eleitores que votam como quem cumpre um preceito religioso ou retribui um favor de compadrio, enternecidos com os laços de família que se estendem do netinho evocado em pleno parlamento à protuberância glútea exibida ministerialmente.

Entre avanços e desvios, o PT deixa como legado programas sociais que merecem figurar como políticas de Estado, e não ocasionalmente de governos. Mas terá o partido a ousadia de se reinventar?

Agora, os pobres, os excluídos, os sem-terra e os sem-teto, que tinham a esperança de ser felizes, terão que buscar outras agremiações partidárias ou forjar novas ferramentas de fazer política, fundadas na ética, na supressão das causas de desigualdades sociais, e na busca de um outro Brasil possível. 

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), 
entre outros livros.