Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

sexta-feira, 20 de maio de 2016

AS DEZ FRASES MAS LETAIS PARA UM RELACIONAMENTO


Publicado originalmente em BRASIL POST. 
Se você é casado ou está num relacionamento que já dura algum tempo, existem coisas que é melhor que não sejam ditas.

A seguir, terapeutas conjugais e outros especialistas compartilham dez frases e afirmações que você faria bem em eliminar de seu repertório agora mesmo.

1. “Você nunca lava a louça. Só deixa os pratos sujos largados ali.”

A louça pode tomar o lugar de praticamente qualquer coisa. Seja qual for o problema, o uso de termos de acusação abrangentes, como “nunca” e “sempre”, tende a chegar ao mesmo lugar: com você e seu amado mergulhados numa discussão amarga. Além disso, disse a psicóloga Samantha Rodman, de Takoma Park, Maryland, são grandes as chances de sua generalização estar equivocada.

“Nada é apenas preto ou branco; logo, dizer a seu parceiro que ele ou ela sempre se atrasa ou sempre age com egoísmo não pode estar certo”, disse Rodman ao Huffington Post. “Esse tipo de afirmação só leva a uma dinâmica do tipo acusador e acusado, que não é o que se deseja numa relação conjugal.”

2. “Você está falando exatamente como sua mãe.”

Quando vocês estão tendo uma discussão, procure se ater à questão em pauta e limitar-se a falar apenas de vocês dois. Introduzir comparações desairosas com seus sogros é injusto e, em última análise, desvia a atenção de vocês dois e seus problemas, disse Sharon Gilchrest O’Neill, terapeuta conjugal e familiar e autora do livro A Short Guide to a Happy Marriage.

“Mencionar os pais do parceiro pode rapidamente deteriorar em ataques mesquinhos que prejudicam a capacidade do casal de encarar os problemas subjacentes reais”, ela disse ao HuffPost.

3. “Você se acha melhor que todo o mundo!”

Nunca ponha palavras na boca de seu parceiro, ou, neste caso, ideias em sua cabeça. Não há como saber o que outra pessoa está sentindo ou pensando; logo, não externe suas suposições, recomenda a terapeuta conjugal e familiar Becky Whetstone, de Little Rock, Arkansas.

“Essas frases são irritantes, porque seu parceiro sabe que não são verdade”, ela disse. “O que você está dizendo sugere que você não tem sua cara metade em alta conta. São duas farpas em uma só frase.”

4. “Está parecendo que eu engordei?”

Perguntas sobre peso ou mudanças na aparência são “as granadas mais antigas que existem no roteiro da relação conjugal”, disse Robyn Wahlgast, coach de mulheres para problemas de namoro e relacionamentos.

“Quando você faz essa pergunta, na realidade está querendo dizer: ‘Eu sei que engordei. Estou infeliz com minha aparência e quero que você diga que não se incomoda com o jeito como estou.’ Esse tipo de pergunta quer dizer que você está evitando assumir a responsabilidade por você mesmo. Sem falar que força seu parceiro a ajudá-la a fugir da responsabilidade.”

5. "Você ganhou alguns quilinhos?”

Comentários negativos feitos a seu parceiro sobre a aparência dele/dela também não são aceitáveis.

“Uma das piores coisas que se pode fazer são críticas não construtivas sobre a aparência física”, disse Whetstone. “Isso magoa o parceiro, porque você está sugerindo que ele não é bom o suficiente, que ele vale pouco ou tem algum defeito.”

6. “Você é um péssimo pai/mãe/amante/provedor...”

Críticas que focam o papel ocupacional de seu parceiro ou seu papel na família são especialmente cruéis, diz o psicoterapeuta M. Gary Neuman, de Miami Beach, Florida.

“Afirmações negativas sobre nossa identidade própria são devastadoras”, ele disse. “Esses papéis são tão importantes e delicados. Quando são questionados, nós nos sentimos destruídos. Torna-se muito difícil esquecer declarações desse tipo.”

7. “Aargh, detesto quando você faz isso.” (Dito na presença de amigos ou familiares.)

Criticar seu parceiro ou cônjuge diante de outras pessoas é totalmente errado em um relacionamento, disse Whetstone.

“No exemplo dado acima, você está pedindo que outras pessoas o apoiem para ficar contra seu parceiro –e o que poderia ser pior que isso?”, ela falou. “É dificílimo recuperar-se de uma violação de limites, como essa. Frases como essas geram ressentimentos e perda de confiança no parceiro.”

8. “Mal o conheço. É apenas um cara do meu trabalho.”

Em algum momento de sua vida de casados, é quase inevitável que você ou seu parceiro sintam uma atração pequena e inocente por outra pessoa qualquer. Se isso acontecer, seja sincero. Não tente varrer o sentimento para baixo do tapete, minimizando o que você sente, recomendou Wahlgast.

“A melhor maneira de neutralizar o potencial destrutivo dessa atração passageira por outra pessoa é admitir a atração para seu cônjuge, sem atribuir importância excessiva a ela”, disse a coach. “Experimente dizer a seu marido: ‘Sei que soa ridículo, mas estou com uma quedinha por aquele consultor. Ele é tão divertido, o senso de humor dele me lembra o seu.”

Pode ser um tema incômodo, mas, disse Wahlgast, falar de seus sentimentos com franqueza “vai criar mais abertura com seu parceiro. Cada um de vocês vai se sentir mais à vontade em falar de outros tópicos tabus de maneira gentil e respeitosa.”

9. “Não se sinta assim.”

Não há nada mais paternalista ou amesquinhador que dizer a sua parceira o que ela deveria ou não estar sentindo em qualquer situação dada, disse Rodman.

“Não existe um jeito certo ou errado de alguém sentir”, ela disse. “Os sentimentos são o que são. Tente compreender seu parceiro e ter curiosidade para apreender o que ele sentiu, e não fazer pouco caso de algo que você não compreende.”

10. “Não me espere para dormir.”

Esta frase aparentemente inócua sugere que vocês não estão indo para a cama ao mesmo tempo, hábito que pode ser prejudicial para a relação, disse Wahlgast.

“Ir dormir juntos, ao mesmo tempo, é uma maneira de reforçar sua conexão com seu parceiro. Com ou sem sexo, é uma forma importante de intimidade física”, disse a coach. “Quando você concorda que vocês dois vão dormir em horários diferentes, isso incentiva comportamentos que destroem a intimidade de vocês, como assistir a vídeos pornô sozinho ou trocar mensagens em tom de paquera com amigos e colegas de trabalho.”


MAUS MOMENTOS, NOVAS POSSIBILIDADES


Em meio à atual crise democrática no Brasil, a ação política pensada e construída a partir do princípio da pluralidade motiva o despontar para um recomeço por meio da promoção da liberdade

Por Rogério Luís da Rocha Seixas, no PORTAL FILOSOFIA, CIÊNCIA & VIDA.

Em nossa atualidade, podemos nos referir a alguns diferentes tipos de crise: a crise econômica, a crise de valores, a crise educacional e, claro que não poderia estar ausente, a crise da política entrelaçada com a percepção de uma grave crise na estrutura democrática, principalmente quanto ao seu aspecto representativo, isto é, quando se percebe uma duradoura e preocupante crise das instituições ditas democráticas. Neste contexto, Hannah Arendt (1906-1975) desenvolve um importante diagnóstico crítico, referente à crise da "ação política". Esta pensadora faz o trabalho filosófico de "diagnosticar o seu momento presente", não praticando um mero denuncismo, mas problematizando e concretizando seus fatores e elucidando os seus acontecimentos. A reflexão de Arendt apresenta outro ponto muito peculiar: ao pensar a crise, vislumbra-se sempre um novo começo. Um recomeçar que só por meio da ação política, dimensão da condição humana que mais o humaniza, sendo necessário por este motivo, pensar novas formas de ação política, visando principalmente a cuidar do mundo. Por não estar em mero isolamento, mas por compartilhar com outros homens o mundo em que habita, o homem o faz em plural. Para a autora, a política possui apenas um meio e este representa a manifestação da liberdade na esfera pública por meio da ação política dos homens em conjunto, pois como afirma Arendt: "Os homens são livres - diferentemente de possuírem o dom da liberdade - enquanto agem, nem antes nem depois; pois ser livre e agir são uma só coisa".[1] Todas as atividades da vita activa (labor, trabalho, ação) estão relacionadas com a política, mas a ação é a atividade política por si mesma. E a liberdade da ação política só pode ser mantida e protegida da violência política, que cala a voz dos homens em plural [2], se estes em conjunto mantiverem a esfera pública para agirem. E se podemos enunciar uma crise da ação política, partindo das análises de Hannah Arendt, esta se faz cada vez mais presente, não apenas e necessariamente em ambientes com pouca ou nenhuma abertura para a ação política, mas se indica a diluição da esfera pública, mesmo em ambientes que se identificam como democráticos e livres. Desse modo, pode-se perceber a noção de uma participação de cidadania radical, implicada com a ação política, marcada pela participação política como o elemento constituinte de qualquer comunidade política e democrática. Por este motivo, Arendt alerta que a política não é matéria apenas para políticos profissionais. Algo comum em democracias no geral, inclusive e principalmente a brasileira, que agora demonstra sinais de constituição de uma esfera pública cidadã, embora sob a égide de um "antagonismo do ódio". 

Arendt demonstra como a concepção de política e liberdade encontra-se implicada. Sendo assim, é na ação política que se encontra a liberdade. O sentido de agir denota a importância da ação política, aventando-se que o essencial da ação política reside na pluralidade para a constituição das esferas públicas, apresentando-se como condição de formação da própria sociedade. Alerto para um fator importante: o sentido de liberdade exposto aqui e relacionado diretamente com a ação política não se configura como uma essência própria da condição natural humana. A própria política não é algo dado, como comumente interpreta-se, mas se constrói e assim a liberdade é exercida quando surge abertamente. No espaço público "entre-os-homens". Ora, partindo desta capacidade de ação plural dos cidadãos objetivando o reconhecimento de suas vozes na esfera pública, o exercício dessa liberdade corresponde ao poder. Como afirma a autora: "O poder corresponde à capacidade humana não somente de agir, mas de agir em comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se conserva unido". [3] O poder de agir em conjunto se baseia no direito de associação e requer a comunicação entre as pessoas no espaço público e, portanto, o direito à informação.

VIOLÊNCIA E PODER
Após esta exposição, podemos acentuar que partindo da crítica política arendtiana e por consequência da própria modernidade, a crise do agir político se expressa na desvinculação entre política e liberdade, enfraquecendo a ação participativa cidadã e a constituição de esferas públicas. A capacidade de agir em concerto, de agir com, significa a realização de uma habilidade intrínseca ao homem e a instauração da vocação da sociedade. A partir da interpretação de um agir em concerto na esfera pública, a noção de poder arendtiano se identifica em sua teoria como algo inerente a toda a comunidade, a toda a sociedade, à manutenção da pluralidade. Nesta situação um fator é essencial: a legitimidade. Arendt afirmará que "o poder não precisa de justificação, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; o que ele realmente precisa é de legitimidade". [4]

Na política, como anteriormente destacado, a ação desencadeia processos que geram poder. Este poder de agir não pode ser transferido ou usurpado. Não deve desaparecer pela inação dos homens, com o risco de a esfera pública se dissociar da ação cidadã. Alerte-se que é exatamente devido à desintegração do poder agir politicamente em plural, que enseja o aparecimento da ordem violenta, justificando-a como instrumento de ação política. Facilitando a manutenção de uma ordem estabelecida, permitindo que esta destrua o poder de ação política pública.

Percebe-se que Arendt destaca o sentido de poder positivo, diretamente relacionado com a ação política, enquanto que seu oposto é exatamente a possibilidade da manutenção desta ação. Esta visão mais negativa se refere, é claro, ao poder violento, caracterizado como unilateral e opressor. Obviamente, anula-se a promoção da liberdade, oriunda da ação política. Em se tratando de poder violento, sendo assim interpretado como algo único, acarretando a destruição da esfera pública, não se pode escapar de fazermos referências aos modelos totalitários, que de fato causaram uma fratura no âmbito da práxis política moderna. Por sinal, indica-se neste ponto uma situação bastante paradoxal: os modernos esperavam que ao entregarem a política ao Estado, este promovesse maiores liberdades e garantisse a separação entre esfera privada e pública, fator essencial da polis grega clássica. O Estado não interviria ou o faria de modo mínimo na esfera privada e promoveria a necessidade da liberdade política na esfera pública, garantindo a vida e proporcionando a liberdade de seus cidadãos. Contudo, criaram-se mecanismos tão devastadores que foram capazes de descartar a cidadania, promoveu maior dominação e viabilizou a descartabilidade da vida humana, comprometendo não só a vida como também a própria liberdade. 

Este paradoxo expõe os conflitos existentes nas sociedades que têm sua origem no conflito das interpretações e na violência inicial e residual do poder, enquanto ação política em plural ou poder usurpado e coercivo, restrito a alguns ou a um. Demonstra-se assim a fragilidade do viver em conjunto, mesmo num Estado democrático, que por sinal representa a prática democrática ou a tolera, se tudo girar em torno do consenso unicista. O dissenso é praticamente sinônimo de desordem. De desarmonia. De grave crise democrática. Este quadro reflete a condição da política na atualidade, convertendo-se em uma atividade administrativa e burocrática e, consequentemente, mesmo em espaços ditos democráticos, o ponto de crise se instala com a perda exatamente da dimensão de como a ação espontânea dos homens é essencial para a prática democrática participativa e que ao mesmo tempo, contribui para o fortalecimento da estrutura democrática representativa ou, em outros termos, para a consolidação das instituições de forma a não usurparem o poder. Quando atravessamos um quadro político marcado exatamente por este abuso institucional, que acarreta no próprio desgaste da política e cria-se um forte sentimento de apatia e rejeição, pelo menos referentemente ao que comumente se interpreta como política, somos remetidos a indagar se "política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa apenas onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu meio e limite em parte alguma". [5] Origina-se uma ausência de sentido com relação à ação política, resultando em um mero ajustamento ao modo de ser político no âmbito institucional. A dimensão humana da ação "que não apenas mantém a mais íntima relação com a parte pública do mundo comum a todos nós, mas também é a única atividade que o constitui", [6] perde espaço para uma gestão técnica de governar, transformando a esfera pública em mero espaço de interesses privados, incentivado por meras trocas econômicas, típicas de uma sociedade de produtores e consumidores, evidenciando o triunfo do homo faber sobre a ação e a corrosão da política em um simples meio para se atingir um meio supostamente superior, que não leva em conta a res pública, mas faz normalmente o uso desta para satisfação do âmbito privado.

Dialogando com Arendt, percebemos um ponto essencial de seu diagnóstico referente à crise da ação política: a pluralidade política é irrepresentável, nenhuma entidade ou instituição pode anular ou substituir as vozes dos cidadãos. Por esta razão, toda ação política implica, sempre, na presença dos outros, é realizada em comum. Como destaca Odílio Aguiar, Arendt quer alertar que ao contrário de uma interpretação comum a toda nossa tradição e que alcançou a atualidade, a pluralidade política não é sinônimo de fraqueza, mas a garantia contra toda e qualquer desmesura (hubris): dominação, tirania, etc. [7] Acrescente-se que esta pluralidade de muitas formas passa a ser interpretada como "ameaça à ordem" e "atentado contra as instituições". Assim sendo, para se proteger a "liberdade", busca-se fortalecer as práticas de segurança que fazem uso exatamente de uma hubris da força e coerção, tornando a violência um instrumento político para preservação da segurança em nome da liberdade. Esta alusão feita ao excessivo discurso e prática da maior segurança para garantir a liberdade, não se limita em hipótese alguma a estruturas políticas autoritárias ou segundo um vocabulário arendtiano: totalitárias. Nossas democracias representativas liberais, por meio das suas instituições, expressam de modo perplexamente paradoxal esta crise da ação política, usurpando o poder da pluralidade política e exercendo a repressão como forma de assegurar a liberdade, coibida pela prática da violência do aparato de Estado. Pensando como Arendt, o poder deve ser exercido sem o uso da violência, da força e da coerção, e a autoridade deve ser fundamentada no reconhecimento coletivo. Claro que a filósofa não era ingênua a ponto de acreditar que a violência não se caracteriza como instrumento de governo. Max Weber (1864-1920) destaca que o Estado "reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física". A questão para Arendt, como se pode perceber neste texto, é a de demonstrar como a noção de poder é muito mais ampla, diferenciando-se do conceito de governo, que se confunde em nossa prática política de gabinete. Seu objetivo é distinguir poder e violência. Arendt assevera que "o poder é de fato a essência de todo o governo, mas não a violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelos fins que almeja". [8] O poder não se sustenta ou se legitima de fato sob a tutela de grupos ou de estruturas de governo que o usurpam, mas, sim, na pluralidade da esfera pública.

CRÍTICAS À DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
Ora, se como constatamos ao longo do texto, defende-se que o poder está intrinsecamente relacionado à liberdade plural e não se realiza fora da ação dos homens na esfera pública, o monopólio da esfera pública pelos representantes eleitos pelo povo pode ser compreendido como não apenas a obstrução deste poder, mas a manipulação da coisa pública para usufruir desta para satisfação de seus interesses privados. Esclareça-se que Arendt não é radicalmente contra a estrutura institucional de representação do povo. A questão principal, percebida por meio de seu diagnóstico político crítico, busca nos permitir vislumbrar um quadro atual das democracias que no seu geral e sem deixar de incluir a nossa, correm o mesmo risco: qualquer sociedade que não participa da vida pública estabelece a apatia, a inação, o conforto em apenas ser "representado" e não se "fazer ouvido e visto enquanto representado", além e principalmente abrindo espaço para uma "ditadura do privado", vedando a participação política pública, inibindo, assim, a ação política espontânea, impossibilitando ou dificultando aos governados o exercício de exercerem o poder, facilitando o controle dos governantes, ou para o estabelecimento de uma "democracia oligárquica vitalícia", uma característica bem nacional, em que os negócios públicos tornam-se posse de partidos que permitem a ascensão de famílias que transferem a posse do poder de geração a geração, mantendo a hegemonia do privado sobre o público. Agora, o que claramente não se pode negar são as intensas críticas contra a unicidade ou consensual idade do sistema representativo democrático liberal moderno, diagnosticando e relacionando a crise da ação política com a crise deste modo de governar representativo. O próprio governo representativo está em crise hoje, em parte porque perdeu, com o decorrer do tempo, todas as praxes que permitiam a participação dos cidadãos, e em parte porque atualmente sofre da mesma doença dos partidos: burocratização e tendência do bipartidarismo em não representar ninguém exceto as máquinas dos partidos. [9]

Para Arendt, é de fato inviável a prática da representação política de todos por si mesmos, isto é, por uma ação política participativa, a instauração da representação democrática se materializa pela gura dos partidos e dos seus representantes, eleitos pelo povo, com o objetivo e o dever de representarem (cuidarem) dos interesses e das necessidades dos representados. Há sempre anseio de que os partidos, por meio de seus representantes, atuem em congruência com boa parte das necessidades e reivindicações dos representados ou como mais comumente denominamos: dos eleitores que constituem o povo a ser representado. Assim sendo, o exercício desta representação em plena congruência entre representantes e representados, promoveria a realização da coisa pública, no sentido mais universalizável possível. Esta não deixa de ser a descrição rápida de um tipo de contrato. Identificam-se aqui pelo menos dois problemas essenciais: o da soberania popular, que mediante ao uso do voto, determina uma legitimidade a um número limitado de pessoas o poder de governá-las, limitando-se apenas a conservar o direito de avaliar sua conduta no pleito posterior. E o da representatividade delegada, em que se parte da premissa de que o representante eleito não satisfará sua vontade privada, cuidando dos negócios públicos, visando à promoção do bem comum dos representados. Porém, a distância entre os representantes e os representados torna-se tamanha que o segundo renuncia durante anos a uma parte de sua vontade, com a esperança de que seu representante cumpra com as funções de modo correto e desejado. Indicamos o ponto de crise essencial da ação política: a redução da atividade política à administração dos interesses privados, acarretando no desaparecimento da esfera pública. O contrato é utilizado pelos que governam para alcançar a legitimidade para mandar e obrigar o cidadão que os elegeu representantes a obedecerem. Temos a invasão da esfera pública pela privada e a fusão do exercício de mandatário de governar pelos políticos profissionais, degradando a noção da ação política. A democracia representativa traz consigo a noção de que se pode e até deve prescindir da participação política pública e a estrutura institucional-partidária, legitimada pelo pleito, estrutura-se em um aparato de especialistas que se arrogam de serem especialistas em governar. É exatamente nesta situação que se percebe a atividade política tendendo a se reduzir à satisfação e administração dos interesses privados, ameaçando a esfera pública em seu caráter plural e comum. Como resultado, a apatia e o sentimento de impotência política, afinal a pluralidade vê-se sem condições de se construir e cética quanto à possibilidade de exercer alguma influência política. Interessante que tal "ponto de crise" revela um estado de tensão entre participação política e representação política. Nesta tensão coloca-se em jogo a própria dignidade do espaço público e da ação política. Se não há pessimismo na análise arendtiana, ao contrário, pois a dita "crise" permite pensar o novo. O recomeçar. Também não temos um otimismo ingênuo, pois a autora reconhece as dificuldades desta renovação.

AÇÃO POLÍTICA E DISSENSO
Ora, partindo da premissa de que a soberania popular é uma ficção, Arendt ressalta o valor maior da liberdade, pois ser livre é não estar submetido ao jugo da soberania da vontade de outro. Agir em concerto na esfera pública significa renunciar à soberania das vontades. Tal postura representa a ligação direta entre ação e liberdade, erigindo a esfera pública como resultado da ação política efetiva. O sentido de agon político de Arendt é criticado como antidemocrático e anti-institucional, contudo não se pode deixar de observar que a autora rejeita o consensualismo típico de nossas democracias.

Se agon não parece adequado, a noção de desobediência civil, contrapondo-se ao consensualismo, abre a possibilidade de um fator muito importante: o encontro entre a Ética e a Política. Tal encontro, sendo passível de se realizar, renovando a ação política, não se dá pelo consenso, mas pelo dissenso. [10] Como aponta Odílio Aguiar, um dissenso não é desestabilizador da comunidade, mas na constituição de um consentimento tácito e não uma mera ficção por parte dos cidadãos, no qual o dissenso é parte inerente. Esclareça-se que o dissenso nada tem a ver com a transgressão criminosa, confusão muito comum, que criminaliza a ação política. A dimensão do que Arendt vai denominar como "publicidade" do dissenso está relacionada exatamente à abertura de possibilidade de inovar e começar a instauração de espaços de liberdade igual para ação de todos os cidadãos. Ou pelo menos assim pensa a filósofa, com relação à "possibilidade de instauração de espaços de liberdade". Algo que não necessariamente possa acontecer. 

Agora, como pensar a realização da prática agonal da política? Ou realizar o dissenso para promoção da publicidade na esfera pública? Em outros termos: como agir em concerto em nossas sociedades democráticas atuais? Sociedades marcadas cada vez mais por mecanismos de encolhimento de espaços de liberdade em nome de maior segurança da própria liberdade. Se aceitarmos a noção de agon político na democracia, os fatos referentes ao período das eleições no Brasil e, principalmente, a pós-eleição, nota-se um enfrentamento movido por sentimentos como o ódio e o medo que abrem espaço para se praticar a violência como resolução política. Muito mais do que um agonismo político, experimentamos um "antagonismo do ódio", que infelizmente em nada contribui para uma ação política mais saudável. Ao contrário, os sentimentos são manipulados por todos os protagonistas do jogo politiqueiro que abala totalmente a credibilidade da política como promotora da liberdade e do bem comum. Há uma tentadora relação de cumplicidade com a intervenção de forças autoritárias. Destacando-se que autoritário neste sentido não se limita a identificar uma estrutura militar. Decisões e ações de representantes civis eleitos podem retratar o flerte tentador do abuso autoritário sobre a coisa pública em benefício de objetivos privados. Ironicamente, estas manifestações utilizam-se da esfera pública para expressar este desejo. Irônico e contraditório, pois em uma estrutura política autoritária ou totalitária, a esfera pública se desfaz. A ação política pública é reprimida. Ao mesmo tempo, não se pode negar que há um surgimento de esfera pública e da ação política, especialmente com referência à questão de como não ser governado de modo abusivo. Governado por esta ou aquelas pessoas. Governado segundo decisões que não são compartilhadas, apenas aplicadas. Governados de forma que o abuso do poder por parte dos governantes, os desvia exatamente de suas funções: governar a coisa pública para o público, instaurando a ditadura do privado e a execução da corrupção.

Mais do que um resgate do sentido de política, a filósofa problematiza a renovação e provável reabilitação da ação política pública, essencial para promoção de liberdade e, por consequência, utilíssima para se repensar as bases da democracia. É assim que a autora percebe na crise da ação política um modo de diagnosticar as diversas crises da atualidade política e possíveis caminhos para um recomeçar. Se pensar e trilhar caminhos novos é a principal proposta de Arendt para revitalizar o éthos público.

Partidos políticos X ação política cidadã

Representar exatamente os interesses da "ditadura do privado" ou da "democracia oligárquica vitalícia". Arendt desenvolve uma crítica bastante radical ao modo como se estrutura e funciona o sistema partidário em sua totalidade. Os partidos políticos, independentemente de ideologia, são apontados como obstáculo à ação política cidadã, visto que tendem a monopolizar "as ações políticas". Esta crítica da autora se explica por sua preferência ao que denomina de "sistema de conselhos", substituindo o sistema democrático representativo partidário, por uma confederação de repúblicas. A inspiração republicana aparece como esfera da ação política, permitindo que a liberdade se realize. Requerendo uma participação constante dos cidadãos nos negócios da res publica, exigindo a prática e formação de virtudes políticas para esta participação pública. Não se pode deixar inicialmente de se perceber o eco da polis grega como espaço para se atingir em comunidade uma felicidade pública. Quanto à concepção republicana, embora fosse preciso desenvolver melhor esta questão, não sendo este o objetivo deste texto, Arendt se apresenta como uma ferrenha representante do "republicanismo cívico".

Não se pode deixar de destacar, entretanto, que os conselhos republicanos são percebidos como iniciativas essenciais, com o intuito de se tentar redefinir a representação política no contexto das atuais democracias representativas. Não se trata aqui de mera inclusão de todos, para de tudo participarem, algo reconhecidamente inviável, mas o objetivo se concentra na abertura e multiplicação de esferas públicas, efetivando mais possibilidades de ação política. Reforçando a esfera pública por meio do fortalecimento da pluralidade. O que se deve perceber nesta concepção é a preocupação em se tentar evitar o isolamento dos homens por meio da constante massificação, para que assim não se tornem alvos fáceis de manipulação e arregenciamento de partidos demagógicos e assim se possa preparar o ninho propício para formação de estruturas sociais totalitárias.

1 - ARENDT,1988, pág.79
2 - Para Arendt "A Política baseia-se na pluralidade dos homens". In. O que é política? 2002, pág. 21
3 - ARENDT, 1994, pág. 36
4 - Idem, 1994, pág. 41
5 - ARENDT, 2002, pág. 39
6 - Idem, 2010, pág. 247
7 - ODÍLIO, 2001, pág. 79
8 - ARENDT, 1994, págs. 40-41
9 - Idem, 2005, pág. 79
10 - ARENDT, 2004, pág. 49

REFERÊNCIAS

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. Tradução José Volkmann. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.

___________. Sobre a Violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

ODÍLIO, A. Filosofia e Política no Pensamento de Hannah Arendt. Fortaleza: EUFC, 2001.

ARENDT, H. A Dignidade da Política.Tradução de Helena Martins et al. Revisão Técnica Antônio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

__________ O que é Política? Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

__________ Crises da República. Tradução José Volkmann. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

__________ A Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo. Revisão e apresentação: Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. 


quinta-feira, 19 de maio de 2016

FELICIDADE FOI-SE EMBORA?


Fragmentos da obra de mesmo nome, editada pela Vozes-Nobilis, escrita pelos autores Frei Betto, Leonardo Boff e Mário Sérgio Cortella.

"Há que distinguir felicidade, alegria e prazer. Prazer é agradar os cinco sentidos: degustar um bom vinho, contemplar uma pintura, ouvir uma boa música etc. Os prazeres são momentâneos, epidêrmicos. Não duram. E quem os confunde com felicidade fica sempre em busca de novas sensações no intuito de se sentir feliz".

"A alegria também é momentânea. Sentimos alegria ao rever a pessoa amada, ao receber uma homenagem, ao assistir a um bom filme, ao comemorar a vitória do time de preferência, ao celebrar uma data importante com a família e os amigos; ou ao vencer um desafio profissional".

No entanto, ninguém sente prazer ou alegria acometido por uma doença, diante de uma catástrofe natural ou sofrendo perseguição. Porém, ainda assim pode se sentir feliz. Eis a diferença. Mesmo sob a dor e o sofrimento uma pessoa pode ser feliz, desde que saiba integrar as adversidades no sentido que imprimiu à sua existência".

Por Frei Betto

"[...] não há nada melhor e mais excelente do que a felicidade. Ela materializa um supremo e soberano bem".

"A felicidade resulta de muitas coisas que devem vir antes. Só quando realizadas é que se irrompe a frágil e vulnerável felicidade".

"A felicidade, por mais plenitude que nos conceda, guarda sempre um transfundo de tristeza: por causa da fugacidade da vida, dos acontecimentos inesperados, das mudanças do curso das coisas e das eventuais rupturas de laços afetivos. Mesmo assim nunca desistimos dela, pois para ela fomos pensados e criados". 

Por Leonardo Boff

"Não existe a felicidade como perenidade. A ideia da felicidade como um estado permanente é uma impossibilidade, à medida que uma boa parte dos nossos sentimentos positivos é vivenciada pela ausência". 

"[...] A felicidade não é um lugar aonde se chega depois de um tempo. Cabe a cada indivíduo ir construindo no cotidiano as circunstâncias para que a felicidade venha à tona. Portanto, ela é uma possibilidade para a qual se pode abrir a porta com uma maior facilitação ou se pode fechá-la". 

"[...] A felicidade, não sendo um estado contínuo - dado que isso a aproximaria do delírio -, é, acima de tudo, a construção de circunstâncias em que eu faça a vida vibrar". 

Por Mário Sérgio Cortella

quarta-feira, 18 de maio de 2016

FELICIDADE E INFELICIDADE RELATIVAS


Em "O Livro dos Espíritos" - Parte Quarta - Das Esperanças e Consolações - Capítulo I - Das penas e gozos terrestres

920. Pode o homem gozar de completa felicidade na Terra?

“Não, pois a vida lhe foi dada como prova ou expiação. Dele, porém, depende a suavização de seus males e o ser tão feliz quanto possível na Terra.”

921. Concebe-se que o homem será feliz na Terra, quando a Humanidade estiver transformada. Mas, enquanto isso não se verifica, poderá conseguir uma felicidade relativa?

“O homem é quase sempre o obreiro da sua própria infelicidade. Pela prática da lei de Deus, a muitos males pode forrar-se, proporcionando a si mesmo felicidade tão grande quanto o comporte a sua existência grosseira.”

Aquele que se acha bem compenetrado de seu destino futuro não vê na vida corporal mais do que uma estação temporária, uma como parada momentânea numa hospedaria de má qualidade. Facilmente se consola de alguns aborrecimentos passageiros de uma viagem que o levará a tanto melhor posição, quanto melhor tenha cuidado dos preparativos para empreendê-la.

Já nesta vida somos punidos pelas infrações, que cometemos, das leis que regem a existência corpórea, sofrendo os males consequentes dessas mesmas infrações e dos nossos próprios excessos. Se, gradativamente, remontarmos à origem do que chamamos as nossas desgraças terrenas, veremos que, na maioria dos casos, elas são a conseqüência de um primeiro afastamento nosso do caminho reto. Desviando-nos deste, enveredamos por outro, mau, e, de conseqüência em conseqüência, caímos na desgraça.

922. A felicidade terrestre é relativa à posição de cada um. O que basta para a felicidade de um, constitui a desgraça de outro. Haverá, contudo, algum critério de felicidade comum a todos os homens?

“Com relação à vida material, é a posse do necessário. Com relação à vida moral, a consciência tranquila e a fé no futuro.”

923. O que para um é supérfluo não representará, para outro, o necessário, e reciprocamente, de acordo com as posições respectivas?

“Sim, segundo as vossas idéias materiais, os vossos preconceitos, a vossa ambição e as vossas ridículas extravagâncias, a que o futuro fará justiça, quando compreenderdes a verdade. Não há dúvida de que aquele que tinha cinqüenta mil libras de renda, vendo-se reduzido a só ter dez mil, se considera muito desgraçado, por não mais poder fazer a mesma figura, conservar o que chama a sua posição, ter cavalos, lacaios, satisfazer a todas as paixões, etc. Acredita que lhe falta o necessário. Mas, francamente, achas que seja digno de lástima, quando ao seu lado muitos há, morrendo de fome e frio, sem um abrigo onde repousem a cabeça? O homem sábio, a fim de ser feliz, olha sempre para baixo e não para cima, a não ser para elevar sua alma ao infinito.” 

924. Há males que independem da maneira de proceder do homem e que atingem mesmo os mais justos. Nenhum meio terá ele de os evitar?

“Deve resignar-se e sofrê-los sem murmurar, se quer progredir. Sempre, porém, lhe é dado haurir consolação na própria consciência, que lhe proporciona a esperança de melhor futuro, se fizer o que é preciso para obtê-lo.”

925. Por que favorece Deus com os dons da riqueza a certos homens que não parecem tê-los merecido?

“Isso significa um favor aos olhos dos que apenas vêem o presente. Mas, fica sabendo, a riqueza é freqüentemente prova mais perigosa do que a miséria.” 

926. Criando novas necessidades, a civilização não constitui uma fonte de novas aflições?

“Os males deste mundo estão na razão das necessidades factícias que vos criais. A muitos desenganos se poupa nesta vida aquele que sabe restringir seus desejos e olha sem inveja para o que esteja acima de si. O que menos necessidades tem, esse o mais rico. “Invejais os gozos dos que vos parecem os felizes do mundo. Sabeis, porventura, o que lhes está reservado? Se os seus gozos são todos pessoais, pertencem eles ao número dos egoístas: o reverso então virá. Deveis, de preferência, lastimá-los. Deus algumas vezes permite que o mau prospere, mas a sua felicidade não é de causar inveja, porque com lágrimas amargas a pagará. Quando um justo é infeliz, isso representa uma prova que lhe será levada em conta, se a suportar com coragem. Lembrai-vos destas palavras de Jesus: Bem-aventurados os que sofrem, pois que serão consolados.”

927. Não há dúvida que, à felicidade, o supérfluo não é indispensável, porém o mesmo não se dá com o necessário. Ora, não será real a infelicidade daqueles a quem falta o necessário?

“Verdadeiramente infeliz o homem só o é quando sofre a falta do necessário à vida e à saúde do corpo. Todavia, pode acontecer que essa privação seja de sua culpa, caso em que só tem que se queixar de si mesmo. Se for ocasionada por outrem, a responsabilidade recairá sobre aquele que lhe houver dado causa.”

928. Evidentemente, por meio da especialidade das aptidões naturais, Deus indica a nossa vocação neste mundo. Muitos dos nossos males não advirão de não seguirmos essa vocação?

“Assim é, de fato, e muitas vezes são os pais que, por orgulho ou avareza, desviam seus filhos da senda que a Natureza lhes traçou, comprometendo-lhes a felicidade, por efeito desse desvio. Responderão por ele.”

a) – Acharíeis então justo que o filho de um homem altamente colocado na sociedade fabricasse tamancos, por exemplo, se para isso tivesse aptidão?

“Cumpre não cair no absurdo, nem exagerar coisa alguma: a civilização tem suas exigências. Por que haveria de fabricar tamancos o filho de um homem altamente colocado, como dizes, se pode fazer outra coisa? Poderá sempre tornar-se útil na medida de suas faculdades, desde que não as aplique às avessas. Assim, por exemplo, em vez de mau advogado, talvez desse bom mecânico, etc.”

No afastarem-se os homens da sua esfera intelectual reside indubitavelmente uma das mais freqüentes causas de decepção. A inaptidão para a carreira abraçada constitui fonte inesgotável de reveses. Depois, o amor-próprio, sobrevindo a tudo isso, impede que o que fracassou recorra a uma profissão mais humilde e lhe mostra o suicídio como remédio para escapar ao que se lhe afigura humilhação. Se uma educação moral o houvesse colocado acima dos tolos preconceitos do orgulho, jamais se teria deixado apanhar desprevenido.

929. Pessoas há que, baldas de todos os recursos, embora no seu derredor reine a abundância, só têm diante de si a perspectiva da morte. Que partido devem tomar? Devem deixar-se morrer de fome?

“Nunca ninguém deve ter a ideia de deixar-se morrer de fome. O homem acharia sempre meio de se alimentar, se o orgulho não se colocasse entre a necessidade e o trabalho. Costuma-se dizer: “Não há ofício desprezível; não é a posição que desonra o homem.” Isso, porém, cada um diz para os outros e não para si.”

930. É evidente que, se não fossem os preconceitos sociais, pelos quais se deixa o homem dominar, ele sempre acharia um trabalho qualquer, que lhe proporcionasse meio de viver, embora deslocando-se da sua posição. Mas, entre os que não têm preconceitos ou os põem de lado, não há pessoas que se vêem na impossibilidade de prover às suas necessidades, em conseqüência de moléstias ou outras causas independentes da vontade delas?

“Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.”

Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário. Porém, suas próprias faltas são freqüentemente resultado do meio onde se acha colocado. Quando praticar a lei de Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade, e ele próprio também será melhor.

931. Por que são mais numerosas, na sociedade, as classes sofredoras do que as felizes?

“Nenhuma é perfeitamente feliz e o que julgais ser a felicidade muitas vezes oculta pungentes aflições. O sofrimento está por toda parte. Entretanto, para responder ao teu pensamento, direi que as classes a que chamas sofredoras são mais numerosas por ser a Terra lugar de expiação. Quando a houver transformado em morada do bem e de Espíritos bons, o homem deixará de ser infeliz aí, e ela lhe será o paraíso terrestre.”

932. Por que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?

“Por fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos. Quando estes o quiserem, preponderarão.”

933. Assim como, muitas vezes, é o homem o causador de seus sofrimentos materiais, também o será de seus sofrimentos morais?

“Mais ainda, porque os sofrimentos materiais algumas vezes independem da vontade; mas o orgulho ferido, a ambição frustrada, a ansiedade da avareza, a inveja, o ciúme, todas as paixões, numa palavra, são torturas da alma.

“A inveja e o ciúme! Felizes os que desconhecem estes dois vermes roedores! Para aquele que a inveja e o ciúme atacam, não há calma, nem repouso possíveis. À sua frente, como fantasmas que lhe não dão tréguas e o perseguem até durante o sono, se levantam os objetos de sua cobiça, do seu ódio, do seu despeito. O invejoso e o ciumento vivem ardendo em contínua febre. Será essa uma situação desejável? Não compreendeis que, com as suas paixões, o homem cria para si mesmo suplícios voluntários, tornando-se-lhe a Terra verdadeiro inferno?”

Muitas expressões pintam energicamente o efeito de certas paixões. Diz-se: “inchado de orgulho”, “morrer de inveja”, “secar de ciúme” ou “de despeito”, “não comer nem beber de ciúmes”, etc. Esse quadro é sumamente real. Acontece até não ter a inveja objeto determinado. Há pessoas invejosas, por natureza, de tudo o que se eleva, de tudo o que sai da craveira vulgar, embora nenhum interesse direto tenham, mas unicamente porque não podem conseguir outro tanto. Ofusca-as tudo o que lhes parece estar acima do horizonte e, se constituíssem maioria na sociedade, trabalhariam para reduzir tudo ao nível em que se acham. É a inveja aliada à mediocridade.

Freqüentemente o homem só é infeliz pela importância que liga às coisas deste mundo. Fazem-lhe a infelicidade a vaidade, a ambição e a cobiça desiludidas. Se se colocar fora do círculo acanhado da vida material, se elevar seus pensamentos para o infinito, que é seu destino, mesquinhas e pueris lhe parecerão as vicissitudes da Humanidade, como o são as tristezas da criança que se aflige pela perda de um brinquedo que fazia a sua felicidade suprema.

Aquele que só vê felicidade na satisfação do orgulho e dos apetites grosseiros é infeliz, quando não os pode satisfazer, ao passo que aquele que nada pede ao supérfluo é feliz com aquilo que outros consideram calamidades.

Referimo-nos ao homem civilizado, porquanto o selvagem, sendo mais limitadas as suas necessidades, não tem os mesmos motivos de cobiça e de angústias: diversa é a sua maneira de ver as coisas. Como civilizado, o homem raciocina sobre a sua infelicidade e a analisa. Por isso é que esta o afeta mais. Mas também lhe é facultado analisar e raciocinar sobre os meios de obter consolação. Essa consolação ele a encontra no sentimento cristão, que lhe dá a esperança de melhor futuro, e no Espiritismo, que lhe dá a certeza desse futuro.

A FELICIDADE NÃO É DESTE MUNDO


Não sou feliz! A felicidade não foi feita para mim! exclama geralmente o homem em todas as posições sociais. Isso, meus caros filhos, prova, melhor do que todos os raciocínios possíveis, a verdade desta máxima do Eclesiastes: “A felicidade não é deste mundo.” Com efeito, nem a riqueza, nem o poder, nem mesmo a florida juventude são condições essenciais à felicidade. Digo mais: nem mesmo reunidas essas três condições tão desejadas, porquanto incessantemente se ouvem, no seio das classes mais privilegiadas, pessoas de todas as idades se queixarem amargamente da situação em que se encontram.

Diante de tal fato, é inconcebível que as classes laboriosas e militantes invejem com tanta ânsia a posição das que parecem favorecidas da fortuna. Neste mundo, por mais que faça, cada um tem a sua parte de labor e de miséria, sua cota de sofrimentos e de decepções, donde facilmente se chega à conclusão de que a Terra é lugar de provas e de expiações.

Assim, pois, os que pregam que ela é a única morada do homem e que somente nela e numa só existência é que lhe cumpre alcançar o mais alto grau das felicidades que a sua natureza comporta, iludem-se e enganam os que os escutam, visto que demonstrado está, por experiência arqui-secular, que só excepcionalmente este globo apresenta as condições necessárias à completa felicidade do indivíduo.

Em tese geral pode afirmar-se que a felicidade é uma utopia a cuja conquista as gerações se lançam sucessivamente, sem jamais lograrem alcançá-la. Se o homem sábio é uma raridade neste mundo, o homem absolutamente feliz é nele ainda mais raro.

O em que consiste a felicidade na Terra é coisa tão efêmera para aquele que não tem a guiá-lo a sabedoria, que, por um ano, um mês, uma semana de satisfação completa, todo o resto se escoa numa seqüência de amarguras e decepções. E notai, meus caros filhos, que falo dos venturosos da Terra, dos que são invejados pela multidão.

Conseguintemente, se à morada terrena são peculiares as provas e a expiação, forçoso é se admita que, algures, moradas há mais favorecidas, onde o Espírito, conquanto aprisionado ainda numa carne material, possui em toda a plenitude os gozos inerentes à vida humana. Tal a razão por que Deus semeou, no vosso turbilhão, esses belos planetas superiores para os quais os vossos esforços e as vossas tendências vos farão gravitar um dia, quando vos achardes suficientemente purificados e aperfeiçoados.

Todavia, não deduzais das minhas palavras que a Terra esteja destinada para sempre a ser uma penitenciária. Não, certamente! Dos progressos já realizados, podeis facilmente deduzir os progressos futuros e, dos melhoramentos sociais conseguidos, novos e mais fecundos melhoramentos. Essa a tarefa imensa cuja execução cabe à nova doutrina que os Espíritos vos revelaram.

Assim, pois, meus queridos filhos, que uma santa emulação vos anime e que cada um de vós se despoje energicamente do homem velho. Deveis todos consagrar-vos à propagação desse Espiritismo que já deu começo à vossa própria regeneração. Corre-vos o dever de fazer que os vossos irmãos participem dos raios da sagrada luz. Mãos, portanto, à obra, meus muito queridos filhos! Que nesta reunião solene todos os vossos corações aspirem a esse grandioso objetivo de preparar para as gerações porvindouras um mundo onde já não seja vã a palavra felicidade.

François-Nicolas-Madeleine, cardeal Morlot. (Paris, 1863.) 
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec, Capítulo V - Bem-aventurados os Aflitos - Instruções dos Espíritos 

terça-feira, 17 de maio de 2016

REENCARNAÇÃO E CIÊNCIA



Presente nas mais diversas culturas, a reencarnação desafia o tempo, permanecendo viva na mente e nas crenças do ser humano. 

Desde a mais remota antiguidade até os nossos dias, ela vem sendo a forma mais completa de explicar os diversos e complexos fenômenos da experiência humana. Sua credibilidade vem de evidências experimentais e de provas sob rigoroso controle científico. 

A reencarnação é hoje um fato cientificamente provado, em que pese pouco explorado. Com fortes evidências sob o ponto de vista da ciência, já alcançou a atenção dos institutos de pesquisas das universidades. Não é difícil demonstrar, através de provas científicas, que a Reencarnação é uma lei universal e que a evolução humana se processa através dela. 

Reencarnar é retornar a um novo corpo, através de um novo nascimento, via fecundação biológica, da personalidade individualizada do ser humano. Retornar significa voltar com a mesma individualidade anterior. Apesar de mudar-se de nome, de corpo e, às vezes, de cultura, não se passa a ser outro espírito. A personalidade anterior se modificará a partir do nascimento, com um novo ambiente, porém o espírito continuará o mesmo, acrescendo novos conhecimentos. 

Encontramos como sinônimos de reencarnação o termo palingênese, que significa “nascer de novo” e o termo metempsicose, de origem grega, cujo significado aproxima-se do de reencarnação, porém, ao contrário do conceito espírita, o qual só admite o retorno a um corpo humano, também aceita a possibilidade de se regredir às formas animais. 

Os mais antigos livros onde encontramos a doutrina da reencarnação são os Vedas, de cuja matriz surgiram grande parte das religiões e sistemas filosóficos da Índia, os quais contêm hinos sagrados, cuja origem remonta muitos anos antes de Cristo. No Egito, as dinastias mais antigas, acreditavam na preexistência da alma, antes do seu nascimento, assim como na sua pós-existência depois da morte e nos muitos nascimentos da alma neste e em outros mundos. 

Religiões significativas da Pérsia, principalmente o Zoroastrismo, na sua forma genérica popular e dinâmica, seguiam doutrinas contendo a reencarnação, com a concepção de uma espécie de justiça cósmica, na qual as almas recebiam os seus prêmios ou castigos merecidos nas vidas futuras. Há registros de que da Pérsia, a crença da reencarnação foi levada à Grécia. 

A religião ortodoxa Islâmica não aceita nenhuma doutrina de reencarnação. Apesar disso, algumas escolas esotéricas dentro do Islamismo – tais como os Sufis e os Drusos, defendem fortemente a reencarnação. Alguns místicos islâmicos e poetas sufis como Rumi, Hafiz e outros, defendiam abertamente a reencarnação. 

De acordo com Flavius Josephus, o 1º historiador judeu do século I d. C., as três escolas antigas de pensamento e prática da religião judaica – os Saduceus, os Fariseus e os Essênios – diferenciavam-se acerca do destino da alma após a morte do corpo. Os Saduceus defendiam que a alma morre juntamente com o corpo. Os Fariseus mantiveram a imortalidade da alma, o renascimento das almas das pessoas boas noutros corpos e o castigo eterno das almas dos mais fracos. Os Essênios aceitavam a imortalidade e rejeitavam a reencarnação. O Velho Testamento contém passagens (Provérbios 8:22-31; Jeremias 1:4-5) nas quais o autor professa que teria existido anteriormente ao nascimento físico, com destaque para Malachias (4:2-6) que previu o retorno de Elias à Terra. 

No Alasca, entre os índios da tribo Tlingits, é crença geral que os mesmos sinais e cicatrizes podem reaparecer no corpo do renascido. Fato já comprovado cientificamente nas pesquisas de Ian Stevenson. Entre os Esquimós, há inúmeros casos de pessoas que se recordam de suas vidas pregressas. Diversas tribos americanas, dentre elas os Peles-Vermelhas, aceitam a reencarnação. Os Winnibagos crêem na reencarnação. Crença idêntica existe entre os índios Chippeway. Eles estão certos de que, em seus sonhos, podem reviver acontecimentos de encarnações passadas. 

A principal corrente do Cristianismo ortodoxo, o Catolicismo, nunca acolheu abertamente a doutrina da reencarnação nas suas crenças, porém pensadores importantes e seitas dinâmicas abraçaram uma ou outra versão da doutrina dos renascimentos terrestres. Um Conselho “ecumênico” importante (o 2º de Constantinopla, em 553 d. C.), de acordo com a crença comum, anatematizou, isto é, condenou todas as concepções da preexistência da alma e do renascimento, que faziam parte das teses de Orígenes (185 – 254 d. C.), excomungado em 232 d. C. por adotar a reencarnação. Um dos expoentes máximos da Igreja, Clemente de Alexandria (preceptor de Orígenes), aceitava a reencarnação e, ainda mais, afirmava que São Paulo também professava tal crença. 

Nos Diálogos de Platão - Fedon, Banquete e República, a reencarnação é apresentada como um dos ensinos de Sócrates. Em República, livro X, há o episódio de Er, filho de Armênio, originário da Panfília, que, após 12 dias de morte aparente, recupera-se e conta o que viu no mundo dos mortos. Relatou como se dá o retorno das almas para o renascimento. Anteriormente a Sócrates, pelo menos Pitágoras, Heráclito e Empédocles expressaram explicitamente idéias de reencarnação. Em Fedon, Platão atribuiu a Sócrates a doutrina da existência da alma antes de entrar neste mundo, assim como a sua sobrevivência.

A despeito da Filosofia e em pleno século XX, as investigações sobre o tema tomaram novo impulso. Na França, com Albert Des Rochas, na Índia com Hamendras Nat Banerjee, nos Estados Unidos, com Ian Stevenson. Cada um à sua época, desenvolvendo diferentes métodos de pesquisas, a partir de fatos concretos, trouxe nova luz a respeito da reencarnação, principalmente introduzindo-a como objeto de investigação científica. 

As pesquisas em torno da reencarnação virificam-se em vários campos; dentre eles, tem-se a Regressão de Memória e as Lembranças Espontâneas na Infância. Entre os estudiosos de regressão de memória destacam-se Albert Des Rochas, Edith Fiore, Denis Kelsey, Morris Netherton, Helen Wambach e Hermínio Miranda. Todos eles desenvolveram experiências em torno da regressão de memória com resultados surpreendentes, que extrapolaram os espaços científicos, penetrando nos consultórios de psicólogos como técnica terapêutica. 

Nas pesquisas de Lembranças Espontâneas na Infância, destacam-se os trabalhos de Ian Stevenson, H. N. Banerjee e Hernani G. Andrade. São pesquisas de grande credibilidade pelas características da espontaneidade e da insuspeição em se tratando de crianças. Há milhares de casos catalogados com a confirmação das informações sobre vidas passadas que não se resumem a vagas memórias, mas, sim, a dados precisos, com nomes, datas, locais e detalhes importantes. Em tais pesquisas verificou-se que, o intervalo de tempo entre uma e outra encarnação pode variar de dias a séculos. 

A necessidade de se estabelecer um princípio diretor justo e equânime para justificar a sociedade e suas complexas relações, coloca a reencarnação como o mecanismo capaz de favorecer a justiça divina e de possibilitar o crescimento espiritual da sociedade. Nada poderia justificar as contingências do existir com a precisão com que a reencarnação o faz. As dificuldades e conflitos humanos passam pela necessidade de uma justificativa filosófica e até mesmo do ponto de vista do equilíbrio energético. 

A reencarnação é a chave para desvendar os mistérios provocados pelo vazio do conhecimento parcial que o ser humano tem sobre si mesmo. Nem sempre a justiça, ou seja, o processo educativo para resolver problemas de vidas passadas, o qual se torna possível pela via da reencarnação, dá-se imediatamente na encarnação seguinte do espírito. Os mecanismos educativos podem ocorrer na mesma existência, sem a necessidade da reencarnação, como também podem acontecer após várias encarnações. 

O tempo que leva para que o processo educativo se instale, dependerá da ocorrência de fatores que propiciem o aprendizado do espírito. Às vezes, há a necessidade de se reunir pessoas várias num processo único, o que poderá levar décadas, séculos ou milênios. Deve-se salientar que ninguém, nenhum ser humano, estará isento do processo de educação. A reencarnação é mecanismo obrigatório no nível de evolução em que se encontra a humanidade terrestre. Ninguém está isento dela. Não há privilégios nem privilegiados. 

Reencarnar sem a lembrança do passado é o mecanismo que possibilita a convivência de contrários e daqueles que elevaram a paixão ao seu grau máximo. Sem o esquecimento das experiências anteriores não seria proveitosa a reencarnação. Reencarna-se para aprender, para educar-se. Para crescer a partir de novos elementos, de uma nova oportunidade, num novo ambiente, onde se possa construir ou reconstruir seu próprio crescimento. Tal esquecimento não significa a perda do conhecimento adquirido nas existências anteriores. O espírito não involui. Não se perde o que já se sabe. Esquece-se temporariamente o que não é relevante para o crescimento do espírito. 

As qualidades, os defeitos, as emoções, os amores, os ódios, ficam latentes e participam, de forma subjacente, nas relações do reencarnado, atuando de forma inconsciente. Seus desejos e escolhas são influenciados pelas experiências das encarnações anteriores. Muitos espíritos que estiveram juntos em encarnações anteriores se separam para se reencontrarem mais adiante. Alguns desafetos quando se vêem se “lembram” do passado. Pode ocorrer que a inimizade retorne. Como também os afetos quando se reencontram refazem a mesma ligação que tiveram no passado. O espírito “enxerga” o outro espírito, independente do corpo que têm e do grau de parentesco que possuem. 

Alguns espíritos não reencarnam na mesma época que seus afetos e ficam a velar por eles para que obtenham sucesso naquela encarnação. Ao libertar-se do corpo, seja durante o sono ou com a morte, o espírito vai aos poucos retomando sua memória integral. O retorno através da reencarnação se dá para o aprimoramento do espírito. É um processo educativo, e não punitivo. Encarado dessa forma, não há um número definido de encarnações para um espírito. Os processos não se dão de forma linear, isto é, não se passa pelo que se causou a outrem na mesma proporção. 

As circunstâncias a que um espírito está sujeito numa encarnação expiatória são sempre atenuadas pela Misericórdia Divina. Não se devem interpretar as doenças e outros sofrimentos senão como processos educativos. Errou-se no passado porque não se sabia como agir corretamente. Retorna-se para aprender até não mais se precisar reencarnar. Os equívocos humanos são conseqüência de sua ignorância. As idéias inatas, as simpatias e antipatias gratuitas, os gênios, de alguma forma parecem denunciar uma experiência anterior. 

O conhecimento não se produz de forma mágica. A reencarnação explica tais conhecimentos “inatos”, como oriundos de experiências em existências anteriores. Tudo então é aprendido pelo espírito através das vidas sucessivas. Coisa alguma lhe é “dada” de graça. Se no passado alguém adquiriu uma aptidão qualquer, ela hoje se manifestaria de alguma maneira como uma habilidade natural. Em muitos casos, os reencarnantes retornam com marcas de nascença. Trazem cicatrizes denunciadoras de experiências pregressas. Marcas que, quando não são creditadas a fatores genéticos, reproduzem-se de uma a outra existência por mecanismos psíquicos. As experiências que produziram as marcas foram de tal forma intensas que gravaram o corpo físico e o perispírito, denunciando a existência de uma matriz comum onde ficam “guardadas” as impressões do espírito. Essa matriz é o perispírito. Da mesma forma que essas marcas, surgem fobias, traumas, que podem se revelar logo na primeira infância. 

O conceito de reencarnação transcende ao aspecto da mera crença que está presente nas mais antigas culturas, tornando-se a base para a compreensão da razão de como vive o ser humano. A reencarnação não foi concebida como uma teoria para explicar a realidade, mas é uma realidade que explica e suscita muitas teorias. As relações humanas são influenciadas pelas emoções geradas nas experiências vividas no passado. Impulsos, estímulos, reações emotivas, atitudes diversas, não são apenas fruto da vontade e do meio ambiente, mas principalmente das experiências pregressas que estão gravadas no psiquismo, o qual não morre. 

A personalidade integral, a qual sobrevive à morte, já possui experiências diversas em matéria de profissões, de línguas aprendidas, de tipos de sexo, de classe social, de condição econômica, etc. O fato, por exemplo, de já ter experienciado viver nos dois tipos de sexo, concede ao ser humano habilidades para habitar nesse ou naquele corpo, sem que isso lhe cause qualquer problema quanto à sua relação com o sexo do corpo escolhido. Uma nova encarnação representa a construção de uma nova personalidade no novo meio em que se vai renascer. Os traumas e conflitos, dessa forma, aparecem tendo como uma das causas, talvez a principal, essa realidade interna, anterior, que contracena com a nova realidade externa. 

A solidão e as repetidas e constantes desilusões afetivas podem ser encaradas como resultantes de processos educativos, oriundos de experiências mal sucedidas no passado. O Espiritismo, com Allan Kardec, trouxe de volta a reencarnação como conhecimento fundamental de sua doutrina. Através do Espiritismo a reencarnação é analisada sob o ponto de vista sociológico e moral. A doutrina das vidas sucessivas é o alicerce da evolução. A frase “Nascer, morrer, renascer ainda, progredir sempre, tal é a lei” resume o significado da reencarnação para o Espiritismo.

Adenáuer Novaes no livro: Conhecendo o Espiritismo - Curso Básico