Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A QUEM SERVE A MISÉRIA INSTITUCIONALIZADA?


No ano de 2015, 1% da população mundial atingiu metade do total de ativos. Em outras palavras, 1% da população do planeta detém o mesmo volume de riquezas que os restantes 99% – uma desigualdade grotesca.

Para chegarmos nesse grau de concentração de renda, foram necessários séculos de uma vertiginosa criação e acumulação de riquezas, um processo que historicamente se dá na base da exploração de todas as categorias de pobres e desvalidos que já andaram sobre a terra, dos escravos aos operários, das crianças e mulheres desprotegidas aos milhões de migrantes condenados a não mais que tentar sobreviver.

E com papel decisivo nessa empreitada estão as religiões que se intitulam cristãs, na medida em que oferecem pouca reflexão à letra bíblica, a fim de domar a massa com a promessa de um céu mais justo, na medida em que condenam o direito à indignação diante da ausência de direitos básicos ou oportunidades efetivas que permitam conquistas reais, e com retóricas sagazes como a de um povo pacífico que deve “dar” para receber (“Dai, e servos-á dado”, Lc. 6,38), acobertando, assim, um povo passivo, manipulado, domado, resignado e útil.

Mas, afinal, a quem serve a miséria institucionalizada?

O mundo em que vivemos é o mundo da economia. A política é um mero disfarce, um artifício cujo objetivo é encobrir esse fato. Paradoxalmente, ela é também nossa única saída. Orai e vigiai, mas também problematizai e agi.

Se antes a riqueza era palpável – metais preciosos, commodities, dinheiro – hoje ela é etérea, desmaterializada. Boa parte dela existe somente como números em redes de computadores, os quais, administrados nos grandes centros financeiros do mundo, trabalham para seus donos, permitindo que a elite da elite mundial enriqueça mais a cada dia, mesmo sem produzir nada.

Um excesso de dinheiro que se converte em futilidades e, em última análise, em desigualdade. Sim, porque essa riqueza gerada nos centros financeiros precisa vir de algum lugar. E esse “lugar” é de todos nós, do trabalho mal remunerado, da exploração predatória do planeta, da socialização dos prejuízos (o nome Samarco vem à mente). Para suprir um punhado de contas bancárias com muitos zeros à direita é preciso que todo o resto da população mundial se torne mão de obra (PEC 55 faz algum sentido?).

A possibilidade de uma vida autônoma, desvinculada do nexo monetário, é praticamente inexistente. Para viver, é preciso vender a própria força de trabalho. Esse fato, especialmente em países pobres ou nos quais predomina a ideia do Estado mínimo, significa que uma parcela enorme da população viva em permanente situação de vulnerabilidade. Se perder o emprego, o trabalhador não terá onde viver, o que comer, não terá acesso à assistência médica, seus filhos não terão escola.

Estranhamente, o desejo por autonomia é praticamente inexistente. A verdade é que a falsa liberdade em que vivemos é cativante. Falsa liberdade evidente no meio espírita, por meio da crença de que a Doutrina Espírita cumpriu a promessa de descortinar véus sobre os textos bíblicos. Considerando nosso apego aos antigos conceitos e os equívocos* das traduções, que raramente criticamos, pode-se afirmar que, quase 160 anos depois, não compreendemos o alcance libertador desta filosofia.

Escreveu profeticamente Aldous Huxley, em 1932, em Admirável Mundo: “A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão”.

Em seu novo documentário, HyperNormalisation (2016), Adam Curtis faz uma provocação poderosa. Diz ele: “Você vai a um escritório e se senta em uma escrivaninha, mas talvez esse seja um trabalho falso. O seu verdadeiro trabalho é comprar. As verdadeiras fábricas de nossos tempos são os shopping centers. É lá que o verdadeiro trabalho duro é feito”.

Para considerável fatia do mundo ocidental, viver é comprar. Não há interessados em uma vida autônoma fora do nexo monetário porque todos querem consumir. Esta é uma prisão na qual se entra voluntariamente. De bens de primeira necessidade a objetos absolutamente inúteis, de experiências únicas a celebrações inesquecíveis, tudo se compra, inclusive a paz dos mornos, a paz daqueles que, com a caridade do supérfluo, se eximem da responsabilidade de serem também responsáveis pela manutenção dessa prisão consumista. Basta fazer caridade!

Para que essa roda gire é fundamental que outras formas de existir sejam destruídas ou pareçam desinteressantes. A vida longe das possibilidades de consumo passa a ser questionada: seria isto vida? O próprio tempo deve obedecer à lógica da produção, atropelando no processo tudo aquilo que funciona em seu próprio tempo: o nascimento, as crianças, os idosos e a morte.

Para a roda girar, precisamos acreditar que não temos opções. É necessário que as ideias capazes de paralisar essas engrenagens sejam elas mesmas destruídas. É preciso que deixemos de lado nossa cidadania, aqui entendida como a luta por direitos, e nos conformemos com nosso papel de consumidores. É preciso odiar os pobres e amar os ricos, ou, como disse Malcolm X: “Se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”. Note-se o papel dos “jornais” nessa inversão de conceitos. E mais uma vez, sob a paz dos mornos, basta acrescentar uma dose de caridade semanal para a imediata harmonização espiritual.

No caso do Brasil, vivemos um processo paradoxal que faz a sociedade enxergar direitos básicos (à educação e à saúde, por exemplo) como privilégios, ao mesmo tempo em que enxerga os privilégios como direitos (pensemos nos salários do Judiciário e do Legislativo). E o grosso da classe média se identifica com as camadas altas, acreditando que tem mais a perder do que a ganhar com uma sociedade mais igualitária.

Para que a desigualdade possa se perpetuar, é preciso matar a ideia de igualdade, acreditar que as diferenças entre os seres humanos se justificam, e isso se dá por meio de mecanismos como a noção de meritocracia. É preciso ignorar completamente um dos mais famosos conselhos de Erasto, citado muitas vezes por Kardec, “Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira”.

Em outras palavras, os vencedores seriam aqueles que se esforçam. Uma ideia risível em um mundo recém saído da escravidão, racista e até hoje profundamente machista. Dois minutos de raciocínio bastam para perceber que é impossível e injusto comparar pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades na vida.

A sociedade brasileira é profundamente preconceituosa. Aqui, nascer preto e pobre é quase uma condenação. Mudar essa configuração de mundo começa com uma crença básica: todos os seres humanos têm direito a uma vida digna e aos mesmos direitos. E a única saída para implementar esses princípios é que se tornem políticas públicas, e o caminho para isso é a política.

Por mais fragilizada que ela esteja perante o poder da economia, a política é a arma que nos resta. Certamente é preciso mudar a política, mas não a abandonar. A pregação do apartidarismo e da falência da política – “são todos farinha do mesmo saco” – só interessa aos poderosos de sempre.

(*Vide a imensa alteração de sentido: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus” (na tradução para o grego) e “Em marcha, pobres em espírito! Sim, deles é o Reino dos Céus” (no hebraico dito por Jesus) - vide Caminho pra Casa, blog de Mauro Lopes, com as devidas referências bibliográficas)

Por Ana Fiorini, revisora e tradutora, e Cynthia Santos, pedagoga e roteirista, publicado originalmente na Revista Crítica Espírita, 
ano 2, nº 23, novembro de 2016.

Para fazer o download da edição completa da 
revista Crítica Espírita clique A.Q.U.I.

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