Introdução

Há muito o que ser aprendido. Há muito o que podemos extrair do que vemos, tocamos, ouvimos, e acima de tudo, sentimos. Nossa sabedoria vem dos retalhos que vamos colhendo ao longo de nossa evolução, que os leva a formar a colcha que somos. Esse espaço é para que eu possa compartilhar das luzes que formam o que Eu tenho sido!!!

domingo, 13 de março de 2016

PURIFICAÇÃO DA ALMA


Publicado originalmente no PORTAL FILOSOFIA CIÊNCIA E VIDA.

A tarefa da Filosofia, no contexto da dualidade dos mundos em Platão, é purificar a alma, conduzindo o homem a libertar-se do corpo, o que equivale à morte. De acordo com as teses de Platão e Montaigne, cada um ao seu modo, a Filosofia é um exercício para a morte

Para Platão, o conhecimento é obtido por meio da reminiscência, em que a alma relembra o que antes contemplou no mundo das idéias, portanto, o que observamos em nosso mundo real são meramente as sombras das formas. No momento em que contemplamos com os olhos do corpo os objetos, nossa alma é levada a recordar a forma de tal objeto fazendo que seja possível conhecê-lo, mesmo não atingindo a forma ideal do objeto por meio dos sentidos corporais, mas buscando a ideia do que outrora pôde observar no mundo inteligível. Deste modo, se a alma um dia contemplou o que agora conhece como sombras, ela novamente contemplará o ideal no momento em que despojar-se do corpo. Neste sentido, podemos afirmar que a alma contempla o ideal e se esquece dele quando atrelada ao corpo, sendo que este a priva de conhecer as formas.

Presa ao corpo, a alma está impedida de alcançar as formas perfeitas. O estudo da Filosofia é uma maneira de a alma voltar-se sobre si, ainda em vida, desligando-se pouco a pouco do corpo, tornando cada vez mais aceitável a morte como caminho único à perfeição.

A alma do homem necessita de rememorar o que antes contemplou, já que o corpo é um objeto que priva a alma de conhecer a verdade (que são as formas) o corpo é o cárcere da alma. Desta forma, aquele que busca a verdade, luta durante toda a sua vida para libertar-se do corpo e alcançar a verdade eterna. Contudo, a Filosofia é o meio pelo qual podemos alcançar tal verdade, pois é por ela que podemos estar em sublime reflexão, visto que pelo exercício da Filosofia a alma pode voltar-se a si mesma, desligando-se do corpo e atingindo o puro, o eterno, o ideal as formas.

A Filosofia conduz o indivíduo, que busca a sabedoria, a desejar a morte em detrimento da vida corporal que lhe fornece ilusões e sombras do mundo ideal, ficando a alma presa ao corpo, corrompendo-se pelas paixões corporais e obtendo somente conhecimentos aparentes. Com a morte, a alma é libertada do corpo e pode novamente desfrutar do mundo onde residem as formas, atingindo o conhecimento verdadeiro que só é possível em conformidade com o mundo invisível, o mundo das formas, o mundo inteligível.

Imortalidade

É neste sentido que a Filosofia conduz a alma para a sua purificação e morte, isto é, o exercício filosófico conduz a alma a soltar os grilhões que a prendem ao corpo, faz que ela reflita sobre sua condição decadente no momento em que está atrelada a este, observando um mundo dado como real, quando deveria estar contemplando o ideal no mundo inteligível junto com outras almas. Assim, "o corpo é proposto à alma como uma matéria que ele deverá incessantemente modelar à sua própria semelhança, depois que ela própria tiver imitado as formas. A alma tem por incumbência introduzir em si própria e no corpo leis imutáveis da harmonia que reinam sem contestação no mundo celeste"

Deste ponto, a alma volta-se a si mesma recordando o que antes contemplou no mundo inteligível (reminiscência) quando ainda não estava ligada ao corpo, já que este a engana e impede que ela contemple a verdade. A alma, atrelada ao corpo, recupera gradativamente a impressão claramente inculcada nela pela ação causal da forma, ou seja, a alma busca relembrar as impressões que lhe foram fixadas quando residia no mundo celeste e estava em convívio com as idéias.

Se a alma, após a morte do corpo, volta a contemplar as formas, ela sobrevive e o corpo perece. Logo, a alma é imortal. Em Platão, a imortalidade da alma pode ser demonstrada por meio Se a alma, após a morte do corpo, volta a contemplar as forma, ela sobrevive e o corpo perece. Logo, a alma é imortal. Em Platão, a imortalidade da alma pode ser demonstrada por meio do exercício da Filosofia.

Pelo exercício da Filosofia, a alma pode voltar se a si mesma, desligando-se do corpo e atingindo o puro, o eterno, o ideal - as formas.

Tudo o que existe deriva de seus contrários, como, por exemplo: o belo e o feio; o feio é uma privação da característica do belo, isto é, mantém certa distância da forma ideal do belo. Assim, não há a forma do feio, mas somente a forma do belo. Estendendo isso à alma, tem-se que a vida gera a morte e vice-versa, ou seja, a alma concebe vida ao corpo, este perece e a alma sobrevive. Logo, ela é imortal e indestrutível. No diálogo Fédon, Platão exprime uma demonstração acerca dos contrários que prova a imortalidade da alma do seguinte modo: tem-se que o número três é ímpar, já o número dois é par; o primeiro não é o contrário do segundo, mas o número ímpar é o contrário do número par. Logo, as coisas possuem em si os seus contrários, mas não os aceitam. O três não aceita a paridade e o dois não aceita a imparidade.

Desta forma, a prova da imortalidade da alma se estabelece considerando que o corpo aceita a alma, que lhe concebe a vida, sendo que o contrário da vida é a morte; porém, a alma não aceita o seu contrário, portanto, a alma é imortal. Além disso, Platão considera que: se o ímpar fosse indestrutível, elevando isto à alma, ela seria também indestrutível. Sendo assim, o conceito de imortalidade exclui a destruição (morte), portanto, a alma retira-se do corpo no momento em que a morte se aproxima. Logo, a alma é imortal e, não obstante, indestrutível.

Vida em ciclos

Do mesmo modo, encontra-se em Montaigne a afirmação de que "a morte é a origem de outra vida", pois vivemos em uma circularidade, ou seja, viver para morrer, morrer para viver, um círculo de começo e fim que sempre se repete como as estações do ano, às quais Montaigne utiliza como metáfora para demonstrar a constância de nossas vidas estabelecidas em: infância, adolescência, idade viril e velhice do mundo. Montaigne explica que a morte de um corpo prescreve a origem de outra vida, o que equivale dizer que uma alma deixa um corpo para vivificar outro, afirmando, assim, a imortalidade da alma, em que um indivíduo morre para dar lugar a outro do mesmo modo que outro o fez.

Deste contexto, observamos que a alma só poderá contemplar o que antes havia contemplado quando se liberta do corpo, que é perecível. E, sendo imortal, alcança a pureza das formas e atinge o verdadeiro conhecimento. Assim, "[...] se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser nos-á necessário separar-nos dele [corpo] e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos [...] nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos [...] porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si mesma - mas nunca antes".

O homem estará mais próximo da sabedoria quanto mais afastado estiver do corpo e, neste sentido, desfeitos os laços que o unem ao corpo, o homem atingirá a pureza da verdade conhecendo de maneira distinta aquilo que verdadeiramente é, ou seja, conhecendo as formas ideais das coisas que observa como sombras no mundo real. A Filosofia possui a função de libertar-nos e purificar-nos. Assim, é por meio do exercício filosófico que o homem pode alcançar o mundo ideal, pois a Filosofia busca a verdade, do mesmo modo que a alma tende a afastar-se do corpo para não ser corrompida e voltar se a si mesma para alcançar o verdadeiro.

Em Platão, tem-se que a Filosofia busca persuadir as almas a se desprenderem dos sentidos, mostrando a ela o quanto é ilusório o conhecimento através dos olhos do corpo e recomenda que se voltem para si e confiem nelas mesmas, observando com os próprios olhos aquilo que é inteligível, necessário e verdadeiro. Diante disso, podemos afirmar que a alma antes de se encontrar com a Philosophia, permanece agrilhoada ao corpo sem a possibilidade de soltar-se, sendo obrigada a apreender as realidades falaciosas e não podendo retomar por si mesma o caminho da verdade, ficando em plena insipiência.

A alma é mantida prisioneira do corpo, sendo corrompida pelas inclinações corporais, não podendo libertar-se por si mesma. Sabemos, todavia, que ela vivifica o corpo, visto que este é um instrumento da alma, como afirma Goldschmidt . Logo, o homem é inteiramente alma, pois o corpo (como instrumento) possui unicamente a percepção da experiência sensível, que faz a alma ser despertada para relembrar as percepções que obteve das formas enquanto não ligada a ele. Ou seja, os sentidos corporais fornecem o impulso para o conhecimento obtido por meio da reminiscência. Entretanto, este conhecimento é falacioso e, desta forma, aquele que busca a verdade deve, o quanto antes, libertar sua alma dos grilhões do corpo. Isto é, buscar a verdade equivale a preparar-se para morrer. Se a Filosofia conduz à libertação da alma e se é somente pela morte que o homem pode se libertar do corpo, Platão afirma que: "em verdade estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à Filosofia, e o próprio pensamento de estar morto é para eles, menos que para qualquer outra pessoa, um motivo de terrores!".

Como é sabido, no diálogo Fédon observamos que Sócrates não está triste em perceber que sua morte se aproxima, ao contrário, ele está em profundo contentamento, já que com a morte ele contemplará a maior felicidade encontrando-se com as formas, com os velhos sábios, com as pessoas de grande caráter, com os bons homens. Sendo Sócrates um grande sábio, pode-se observar que sua alma não tem medo da morte, pois a alma de filósofo se encontra sempre em reflexão, isto é, sempre se distancia do corpo em busca da verdade eterna no mundo celeste.



Sem Medo

Em Platão, a alma do filósofo é definida da seguinte forma: "[...] ela acalma as paixões. Liga-se aos passos do raciocínio e sempre está presente nele; toma o verdadeiro, o divino, o que escapa à opinião, por espetáculo e também por alimento, firmemente convencida de que assim deve viver enquanto durar sua vida, e que deverá, além disso, após o fim desta existência, ir-se para o que lhe é aparentado e semelhante, desembaraçando-se destarte da humana miséria!".

A alma nunca terá medo de separar- se do corpo e, segundo Montaigne, Cícero afirmava que filosofar é preparar-se para a morte, pois o estudo e a contemplação fazem a alma sair do corpo, logo ela se assemelha à morte. Tendo sabedoria aprendemos a não ter medo da morte. Para Montaigne, não devemos temê-la, pois feito isto, ela se torna um tormento e uma ameaça, porém, devemos sempre estar preparados para recebê-la, já que a morte nos ataca subitamente e nunca podemos prever a nossa hora.

Sendo a morte algo inevitável, é preciso meditar sobre ela, aprender a recebê-la sem grandes constrangimentos, pois, encarando a morte, o homem acaba se acostumando a ela. Se aprender a habituar-se a ela, sempre pensar nela, tendo a morte presente a todo o momento nos pensamentos, o homem estará pronto para morrer, sendo este o esperado fim . "A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte".

Pós-morte

Em todos os momentos da vida, o homem não pode deixar de pensar na morte, mesmo em momentos de puro deleite, pois ela pode o atacar de diversos modos a qualquer instante. Entretanto, com a citação acima, quem não pára de pensar em seu fim, nunca aproveita o que a vida lhe proporciona. Neste sentido, Montaigne acrescenta que a própria natureza se encarrega de familiarizar o homem ao esperado fim, visto que na vida ele aprende a receber todos os tipos de males e superá-los. O homem caminha para a morte de forma tênue quase que preparado para ela e aquilo que só ocorre uma única vez não pode ser tão grave assim, pois a morte o livra daqueles males que recebe durante a vida e viver pouco ou muito não faz diferença, já que do mesmo modo deixará de existir

Com efeito, tanto em Montaigne quanto em Platão, a morte é inevitável e preferível, visto que ela livra o homem dos males da vida e, não obstante, das sombras do ideal. Logo, é inevitável não pensar na morte em detrimento da vida, mediante o fato de que ela conduz a um mundo de verdade e felicidade. Porém, não se pode tirar a própria vida, cometer violência para consigo próprio, pois o homem é propriedade dos deuses, somente eles possuem o poder de decidir sobre a vida dele, visto que ele vive em uma prisão e não pode se soltar por si só.

Deste contexto, diante do fim, como saber para onde irá o homem? Qual é o destino da alma? Neste ponto, a vida de cada um é responsável pelo próprio destino, ou seja, as ações terrenas são levadas em consideração como meio de entrada no mundo das almas (Hades). Por conseguinte, as melhores almas serão conduzidas ao melhor lugar destinado àquelas que cultivaram a justiça, a temperança, a coragem, isto é, ornamentaram-se com aquilo que é próprio delas.

Segundo Goldschmidt, quando uma alma pratica o mal, ela o faz a si mesma, ou seja, tudo o que é feito durante a vida determinará se a alma merece ou não um lugar de plena felicidade (ao lado das formas), pois a alma que outrora foi corrompida pelo corpo vagará no mundo inferior até que se ligue a outro corpo merecedor do mesmo mal ao qual ela estava entregue.

Para Platão, a alma que viveu de forma sábia e pura, encontrará no mundo das almas os deuses que servem como companheiros e guias das mesmas, tendo como residência a morada adequada conforme sua vivência anterior, sendo que essas almas foram purificadas pela Filosofia e colocadas no reto caminho da verdade.

A alma é mantida prisioneira do corpo, sendo corrompida pelas inclinações corporais, não podendo libertar-se por si mesma.

Existem dois caminhos que podem ser seguidos pelos homens para que suas almas ocupem os seus devidos lugares: cultivar os prazeres do corpo ou despojar-se deles. No primeiro caso, o homem que alimentou os prazeres corporais não conduzirá a sua alma ao lugar da eterna felicidade. Ao contrário, no segundo caso, o homem que se despojou dos prazeres do corpo saberá com certeza o caminho de sua alma. Sendo assim, os indivíduos devem dedicar se ao exercício filosófico, pois somente este pode libertar a alma do corpo que ao longo da vida a depravou retirando-a do reto caminho que conduz à morada dos deuses.

Diante destes fatos, a morte está presente em todos os passos do homem, em todos os lugares e ele só pode salvar a sua alma alimentando-a com aquilo que há de melhor em conformidade com as formas, e não deve minimizar a dor da perda utilizando-se de expressões que encobrem o verdadeiro sentido da palavra morte, como os romanos diziam no momento de sua chegada: "parou de viver"; caso este que, em nossos dias, não é diferente, quando se utiliza a expressão: "partiu desta para melhor", buscando aliviar a dor de alguém que perdeu algum ente querido.

Não é de se duvidar que a morte cause fraqueza, mas mesmo assim o homem deve estar preparado para ela. Mas não deve deixar de fazer certas coisas em detrimento de outras devido ao peso da morte. Deve conviver com ela e aprender com ela, para que, diante dos momentos da vida, aproveite-os como se fossem os últimos, sem temer o que o espera. Como vimos em Platão, com a morte a alma contemplará novamente a verdade, o mundo perfeito (ideal) e, desta maneira, façamos como Sócrates, fiquemos felizes com o fim que nos espera.

Por Márcio Tadeu Girotti, bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp (campus Marília-SP) e editor da revista Filogênese (www.marilia.unesp.br/filogenese).

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